As fiadas de cadeiras dispostas em ambos os lados da sala não deixavam margem para dúvidas: aquela não era uma noite para pular e dançar. Mas quem ontem se dirigiu à Galeria Zé dos Bois já sabia isso e os lugares não foram suficientes para que todos pudessem assistir sentados às duas atuações que compunham o cardápio da noite: Coelho Radioactivo e White Magic.
O primeiro surge acompanhado pelo Cão da Morte, parceiro na editora Gentle Records, e ambos surgem acompanhados por copos de vinho, que pousam no chão para ir refrescando a inspiração ao longo do concerto. Este arranca em compasso lento, estabelecendo aliás a tónica da atuação, que se centrou no álbum mais recente, Canções Mortas.
O Coelho Radioactivo, ou João Sarnadas, munido de uma guitarra elétrica Stratocaster, um amplificador Vox e auxiliado por delays, reverbs e loops, trata de estabelecer uma base de dedilhados e arpeggios e, com a sua voz de barítono, mergulha no primeiro tema: Braços. No seu orgão Farfisa, o Cão da Morte (Luis Gravito) fornece a linha de baixo e vocalizações complementares, a par de uma respiração ritmada que empresta à canção um ambiente orgânico.
O tema que se segue pega com o anterior, por isso não lhe apanhámos o nome. A abordagem na guitarra assenta num struming que, à medida que se aproxima do final, se torna cortante: uma tendência que se repetiria em outras músicas ao longo da atuação. As expressões dos dois músicos denotam a vivência do que é cantado, refletindo o teor introspectivo do tema, ou melhor, de todo o repertório apresentado.
A terceira canção, que fecha este medley inicial, chama-se Sangue, e culmina num crescendo marcadamente psicadélico que o efeito flanger utilizado sublinha. Só depois se permitem descansar, saudando o público com um “boa noite” e recolhendo o primeiro aplauso da noite.
A música seguinte é, nas palavras do autor, “uma música nova”, e assume um tom mais confessional e momentos de um certo sabor boémio. Um inesperado registo agudo de Sarnadas agita por momentos as águas plácidas em que nada este Coelho e, novamente, assistimos a um final catárquico, sacudido por uma guitarra agressiva.
Seguem-se mais “canções mortas”: De Vez, que inclui um ritmo programado, recurso que voltaria a aparecer
mais adiante; Pistola, que fala com dolência de peripécias da noite; e Deito, uma canção sinistra vestida de melancolia.
Antes de o Coelho e o Cão atacarem o Cavalo, tema em que trocam de instrumentos – Sarnadas vai para as teclas e Gravito para a guitarra -, um momento de humor: “faltam duas músicas, uma que se chama Cavalo, a outra que não se chama Cavalo, porque seria confuso”. A audiência aprecia o momento e, como qualquer entertainer que se preze, João Sarnadas aproveita o embalo para arrancar mais uns sorrisos aos espectadores ao comentar, a propósito do ritmo com que iniciam o tema: “uma salva de palmas para os nossos bateristas”. A música, que conta inicialmente com arranjos de guitarra dispersos, vai ganhando ímpeto e ritmo e acaba com vocalizações agudas sobre camadas de orgão sobrepostas.
Chegamos por fim à tal música “que não se chama Cavalo” (Todo Esse Pó, do álbum Estendal) e com ela ao fim de uma atuação que durou uma hora. Uma hora de música bem executada, cantada sobretudo em tom sereno e sóbrio, por vezes terno, por vezes aproximando-se de um lamento. Se tivesse de descrever a música do Coelho Radioactivo numa frase, diria que são canções que nos fazem ser apanhados a olhar para o infinito.
[Fotos Concerto Coelho Radioactivo + Cão da Morte]
Para a segunda atuação da noite temos quatro microfones, mas apenas uma pessoa: Mira Billote, a vocalista dos White Magic, tem preparados os equipamentos e instrumentos com que vai rodear a sua voz: um processador de efeitos, um bodhran (instrumento celta de percussão, semelhante a um adufe circular) e um instrumento de fole que lembra uma sanfona em forma de maleta: é com este que inicia a atuação, após cumprimentar timidamente o público.
Vestida de negro e envolvida pela escuridão do Aquário da ZDB, fica com os cabelos loiros realçados, o que ajuda a passar uma certa imagem de menina de tribo em sintonia com o universo, que o imaginário recorrente que dá vida aos temas – os ciclos e fenómenos da natureza – reforça.
As músicas, de resto, com as suas letras minimalistas e repetitivas, em que as palavras são transformadas por vezes em sons prolongados, sugerem precisamente um ambiente que, se não é xamânico, é em todo o caso espiritual, e as referências orientais que por vezes emergem, sobretudo nos ritmos, “ajudam à festa”.
A performance de Mira é pragmática: não há comunicação com a audiência para além da que constitui as músicas. Daí que, em conjugação com a abordagem despojada que a apresentação a solo implica – o terceiro tema, por exemplo, foi executado a capella -, não ter sido fácil identificar o alinhamento, que parece ter fugido aos primeiros álbuns, mais influenciados pelo folque, para se concentrar na produção que a banda privilegiou a partir de Dat Rosa Mel Apibus (2006) e, provavelmente, nos temas que integram o novo EP da banda, ainda não editado.
As canções sucedem-se de forma fleumática, com a vocalista absorvida pelo manejo dos instrumentos e pelo uso encantatório da sua voz de timbre encorpado e brilhante, que lembra bastante Grace Slick, a vocalista dos Jefferson Airplane.
Alguns dos temas têm menos de dois minutos de duração. Ao décimo tema, em que é acompanhada por um sample que passa em loop, parece ter decidido subitamente ter chegado ao fim “do que tinha para cantar” e, com um encolher de ombros honesto, faz um rápido fade out ao loop e termina a canção, para anunciar logo em seguida: “one more song”. Esta é transportada nas asas de um tempo acelerado, e em breve estava terminado o envolvente mas algo frio feitiço de magia branca com que a vocalista dos White Magic presenteou o público. Mira agradece, despede-se acenando com ambas as mãos e, com um sorriso fugidio, abandona o palco.
Terminava assim uma noite contemplativa e espiritual no Aquário da Zé dos Bois.
[Fotos Concerto White Magic]
Texto – Pedro Raimundo
Fotografia – Luis Sousa
Promotor – Galeria Zé dos Bois