“Uma gota de água sobe os degraus das escadas. Ouve-la? Deitado na cama, no escuro, escuto o seu secreto caminhar. Como faz? Saltita? Tic, tic ouve-se espaçadamente. Depois a gota pára e durante o que resta da noite talvez não dê mais sinais de si. Todavia, sobe” – (Dino Buzzati – Uma gota, in Pânico no Scala”).
Sensivelmente a meio do concerto de Jacco Gardner, no passado sábado no Musicbox, e projectado sobre a tela o efeito não se deu com uma gota antes com um punhado de estrelas, que desafiando todas as leis da física seguia trajectória ascendente. Pode parecer comparação rebuscada, mas a música deste holandês com cara de quem é companheiro de aventuras de Tom Sawyer, tem a capacidade de desafiar qualquer limite, seja gravitacional ou outro e repleto de subtilezas várias, através de combinações melódicas que são já imagem de marca, seja através da mistura entre teclados, guitarra e voz. Constrói canções. Canções no significado primeiro do termo canção. É pop, é pop barroco, mas cerzido com linhas folk, que também as há e não só quando se socorre de guitarra acústica, e um ou outro ponto a remeter para o psicadelismo.
Em Fevereiro do ano passado, após visita à casa túnel do Cais do Sodré, a surpresa tinha-se apoderado de muitos que acabavam de o ver. Tratava-se da apresentação de Cabinet of Curiosities. Um universo que não sendo novo, aliás o mesmo assume que Syd Barrett é uma das suas principais influências, teve a capacidade de aproximar os espectadores para paisagens melódicas e planantes. Deixar-se embrenhar pela Floresta Encantada, seduzir pelos druidas, beber as poções mágicas sem receio, meter ao bolso os cogumelos e escalar o arco-íris. A nostalgia idílica da voz, a inocência pueril das composições, os teclados em mantas barrocas e os pequenos remates com pandeireta e maracas que reforçam a sensação sublime da desmaterialização. Estamos conscientemente hipnotizados, se tal contradição é possível.
Com Hypnophobia, o mais recente trabalho editado este ano, longe de se perder o efeito supressa, ele lá está, quem sabe se em formas de finas poeiras cósmicas, confirma-se um autor talentoso e sobretudo que marca o seu trilho através da exploração das diferentes cambiantes sonoras. No entanto, tal nunca seria possível sem os músicos que o acompanham. É uma banda naquilo que de mais sincero há. São bons executantes, encaixam e apresentam uma versatilidade patente durante a quase hora e meia em palco, e que carece de confirmação, mesmo quando trocam de instrumentos durante o encore.
Terminou. Provavelmente as gotas continuam a cair de cima para baixo e as estrelas, quando lhes dá para isso, também. Gostamos de acreditar que inverter a ordem universal é possível. Uns seguiram Jacco Gardner em versão DJ em bar ao lado, outros imaginaram como seria construir uma casa na lua ou nos jogos de Verão que se avizinham, mas todos, nós e eles, agradecidos. Afinal há noites em que basta uma sucessão de simples acordes para tornar os afónicos nos mais fervorosos mensageiros da felicidade.
Texto – João Castro
Fotografia – Miguel Mestre