À quarta edição, o Belém Art Fest, ou Festival dos Museus à Noite, veio novamente trazer, durante os passados dias 15 e 16, um leque diversificado de eventos culturais: exposições, stand up comedy, workshops de fotografia, dança e música. Foi esta última vertente que nos levou ao festival. O cartaz musical contou com dj sets no Jardim da Praça do Império e atuações de músicos e bandas que decorreram no claustro do Mosteiro dos Jerónimos e no Museu de Arqueologia. Eis um apanhado do que por lá vimos passar.
Na primeira noite estivemos no Museu de Arqueologia e, de certa forma, a atuação da banda que começámos por testemunhar ajustou-se bem à vocação do espaço pois os Nobody’s Bizness trouxeram de volta à superfície o folk e o blues que floresceram ao longo do século passado.
Durante cerca de uma hora, o conjunto encheu a sala com ambientes oriundos dos estados sulistas da América do Norte.
Munida da sua inseparável washboard e da sua voz suavemente potente, Petra Pais, acompanhada por dois “Luises” – o Ferreira nas guitarras e o Oliveira no baixo elétrico -, deram vida a temas originais e tomados de empréstimo com uma descontração que casou bem com o espírito da bebida patrocinadora daquele palco (whisky), ainda que a mesma fosse de marca escocesa e não americana.
A steel guitar de Luis Ferreira protagonizou alguns momentos de grande desenvoltura e a atuação, que terminou com o clássico de Willie Dixon “I Can’t Be Satisfied”, agradou às largas dezenas de pessoas que se achavam espalhadas pelo chão da sala como se estivessem num Newport Folk Festival em miniatura… transposto para um mosteiro do século XVI.
Mas foi de pé que se assistiu aos senhores que se seguiram: os Lotus Fever. A banda trazia na bagagem as músicas do álbum Search for Meaning (2014), com exceção de What Lies Behind the Curtain, oriunda do EP Leave the Lights Out (2012).
Desde cedo se percebeu que a acústica desafiadora da sala não seria entrave à música dos Lotus: a competência da banda impôs-se a esse obstáculo. A atuação serviu para confirmar a legitimidade do buzz que se tem gerado em torno do quarteto, que tem na voz de Zuzarte – uma das melhores no panorama atual das bandas portuguesas – um dos seus maiores trunfos.
A vertente progressiva do som que apresentam é uma moeda de duas faces. De um lado mostra a boa qualidade de execução dos músicos, com destaque para os arranjos de guitarra de Manuel Siqueira; do outro torna-os um pouco “ausentes”, devido à concentração requerida. Isto não é necessariamente mau. Mas é um facto que os momentos altos do concerto se deram quando a banda se “soltou” mais, especificamente nos temas Oceania, Mild e Into the Light. Nota-se também que é nesses momentos de maior intensidade que o baterista Diogo Abreu se sente mais como “peixe na água”, e a música beneficia disso.
Os pedidos de encore por parte do público, a que o tipo de organização destes festivais não permite responder, foram o testemunho da boa prestação dos Lotus Fever.
No segundo dia do festival começámos por assistir aos Mau, que trouxeram o seu eletro-pop dançável de matizes “dreamy” a uma sala aquecida sem piedade por um sol que nela bateu durante todo o dia. Infelizmente, a acústica da sala, que ao longo dos espetáculos ali decorridos favoreceu as atuações acústicas mais que as elétricas/eletrónicas, impossibilitou a perceção das letras. Não se deixe no entanto de dizer que isto em nada diminuiu a performance de Luis F. de Sousa, que possui um timbre eficaz e uma entrega exemplar.
A fórmula musical da banda – ritmos programados acompanhados por bateria, camadas espessas de sintetizadores e harmonias pop sentimentais que servem de base a estruturas líricas simples -, foi pretexto suficiente para o público bater o pé ao longo da atuação, que se centrou nos temas do álbum Safari Entrepeneur (2014) mas que incluiu um sneak peek a um tema a ser lançado em breve. O nome? A sala não deixou perceber.
De regresso ao folk, os primeiros acordes das Golden Slumbers não deixaram dúvidas: eram um convite para os espectadores voltarem a sentar-se no chão e escutarem a abordagem acústica das manas Falcão.
Centrada nos temas do EP I Found the Key (2014), a atuação de Cat e Margarida revelou a mestria do duo no que toca à execução simples e segura das canções, ao ótimo sentido de afinação vocal e aos excelentes uníssonos das harmonias que sobrepõem à guitarra. O timbre mais maduro de Cat funciona bem em conjunto com a voz mais aveludada e “de menina” de Margarida que, se não tivesse confessado que ainda no próprio dia se encontrava quase afónica, não teria, aos ouvidos do público, motivos para o fazer.
O ambiente das canções das Slumbers é sobretudo moody, por vezes um pouco pungente, outras vezes lembrando uma piscadela de olho a Simon & Garfunkel. A cadência do espetáculo manteve-se no geral uniforme, tendo a placidez reinante levado por vezes a uma certa letargia, que o nome com que se apresentam retrata bem. O tema My Love is Drunk refrescou por momentos, com a sua maior dinâmica, essa disposição geral.
Rumámos por momentos ao claustro do Mosteiro dos Jerónimos (palco Montepio) para assistir aos Dead Combo transformarem em música a inquietude que lhes habita o corpo.
A atuação começou em modo fado, com Povo que Cais Descalço, e prosseguiu na mesma toada com Waiting for Nick, que a certa altura uma das gaivotas que sobrevoava o mosteiro decidiu saudar com um guincho, conferindo um ambiente (ainda mais) cinematográfico à banda sonora orfã que acaba por ser a música do duo.
Deixámos entretanto o universo de A Bunch of Meninos (2014), com Tó Trips e a sua cartola curvados sobre a guitarra e Pedro Gonçalves tocando um piano esquizofrénico, e rumámos a outras paragens.
O destino era novamente o palco Famous Grouse, para ver o concerto dos leirienses First Breath After Coma.
A coesão da banda é a primeira coisa que chama a atenção. Arranjos simples tocados com intensidade e total sintonia, visível aliás na forma como balançam em uníssono ao som da própria música. A atuação começou com poucas dezenas de pessoas a assistir mas algum tempo depois a sala enchia – percebeu-se que tinha terminado o concerto dos Dead Combo, ali ao lado – e logo se formou uma multidão que seguiu com convicção o resto do concerto.
A música dos FBAC, um pós-rock com tendências indie, vive bastante da guitarra de Telmo Soares, que fornece “teasers” que percorrem os temas, mas o coletivo é forte e vale como um todo. O final do concerto foi digno de qualquer banda rock que se preze: solto e catárquico. Se tivesse de escolher um título para uma apreciação isolada da prestação da banda, esse título seria: Contemplação, explosão, repetição.
Em jeito de balanço, pode dizer-se que as atuações que nos passaram pelos olhos e ouvidos neste Belém Art Fest provam que a nova cena musical portuguesa está cada vez mais interessante em termos de versatilidade técnica. Mas uma pergunta ficou a fazer-nos comichão no cérebro. Se uma das intenções do festival é a “transmissão dos diferentes valores da cultura portuguesa”, onde estavam as bandas que cantam em português? Será o “Festival de Arte de Belém” um produto “para inglês ver”? É que nas atuações que vimos, a esmagadora maioria da audiência era nacional.
Texto – Pedro Raimundo
Fotografia – Luis Sousa