É uma ideia já repetida e cansada mas cá vai: 2015 tem sido e vai continuar a ser um ano muito complicado para as carteiras de quem gosta de Metal daquela estirpe que vai do Doom ao Sludge, passando por todos os subgéneros porcalhões que existem pelo meio.
Mas vejamos por outro lado, este tem sido um também um ano perfeito para ter a oportunidade de assistir a conjuntos fundacionais, como se tratasse de um curso de História da Música onde não há avaliações e toda a gente tem nota 20 pela comparência. Todo este rejuvenescido interesse nas sonoridades mais pesadas tem permitido às promotoras trazer bandas que doutra forma possivelmente ficariam fora do radar do nosso pequeno rectângulo no fim da Europa. Kudos, portanto, à Amplificasom por finalmente trazer os Earth, exponente máximo desse hermético género que é o Drone, a Lisboa, para dar uma lição de como fazer música lenta (mas mesmo lenta) sem ser aborrecida.
Para preparar o contacto os Earth, julgou-se necessária a presença de um xamã para iniciar os ritos encantatórios. Rui Carvalho, imponente guitarrista conhecido como Filho da Mãe, subiu ao palco apenas munido da sua bastante maltratada mas precisa guitarra acústica para elevar os espíritos. Projecto de um homem só, o Filho da Mãe mantem-se, apesar de tudo, bem acompanhado pelos seus pedais de efeitos, onde o loop, pelo seu papel de criação de texturas sonoras, tem uma importância fulcral. Esta panóplia de maquinaria, contudo, não ofusca em nada a técnica magistral de Rui Carvalho na sua relação íntima com a guitarra, feita de delicadas passagens, complexos dedilhados, palmadas no vácuo corpo de madeira, rasgões que ameaçam a integridade das cordas, o polegar sempre a soltar notas graves e corpulentas enquanto os restantes dedos dançam num corrupio. É nesta relação simbiótica entre homem e tecnologia (Simondon aprovaria) que o Filho da Mãe tocou as suas magníficas composições melancólicas que conquistaram o Musicbox.
Há algo mais em comum entre os Earth e este nosso planeta do que o mero nome. Tal como na Terra, a única constante que sempre houve na banda de Dylan Carson foi a mudança, fosse na permanente alteração de membros ou na sonoridade, que já foi desde o Drone mais cavernoso ao Stoner e, mais recentemente, às ambiências mais cinemáticas. Se o mundo em 1990 era forçosamente diferente ao de 2015, o mesmo se poderá dizer do conjunto de Washington (o estado), actualmente apostado em progredir o seu som algures entre a toada western onírica e tingida de Country e o seu ADN Drone/Doom. Acompanhado por Adrienne Davies na bateria e pelo retornado Don McGreevy no baixo, Dylan Carson apresentou-se no seu jeito simples e sem artifícios para logo a seguir lançar There Is a Serpent Coming. Infelizmente sem poder contar com a voz de Mark Lanagan (é pena, devia haver um Mark Lanagan instantâneo, tipo sopa, para todas as ocasiões), foram os riffs de atmosfera mística e leads quentes a ser o centro das atenções no Musicbox.
Claramente com o intuito de promover Primitive and Deadly, o mais acessível álbum que a banda lançou desde Pentastar, grande parte do set dos Earth centrou-se no material do LP de 2014, não sendo portanto um concerto esmagador, mas mais contemplativo, fazendo jus ao epíteto “Ambient Metal” que Carson deu à música que a banda tem vindo a criar nos últimos anos. Badgers Bane e Even Hell Has Its Heroes foram uma combinação enleante, antecedida de The Bees Made Honey in the Lion’s Skull, que manteve a toada próxima do espírito Americana que tem inspirado o conjunto. Ouroboros Is Broken foi a primeira das incursões ao passado, trazendo aquele lado mais primal dos Earth de volta, com as suas vagas de feedback brotando dos amplificadores a um ritmo tectónico a lembrar uma manifestação musical conduzida pelo próprio planeta, tão primitivo e mortal quanto o conjunto apregoa. Após uma jornada de hora e picos pelo cenário mítico construído em cada uma das nossas longas músicas, o concerto dos Earth chegaria ao fim com a injecção de adrenalina (para os standards da banda, pelo menos) que foi High Command, outra faixa tirada do baú, desta feita para levar o Musicbox a simplemente abanar a cabeça. Melhor final não poderia ter sido concebido para esta noite, a mundanalidade do Stoner Metal foi perfeita para resgatar os presentes do Éter e voltar a ficar com os pés assentes… na Terra.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Valentina Ernö (Silvana Delgado)