Quem olhou para o cartaz, sabia logo que no segundo dia do NOS Primavera Sound teria de encarnar a Rosa Mota, também portuense, para conseguir acompanhar tamanha maratona de concertos. Das 17 horas às 4 da manhã, a expressão non-stop foi a que fez mais sentido, isto para conseguir ter tempo, ou melhor, oportunidade para ver, entre outros, Patti Smith a dar uma lição de como dar espectáculo, Spiritualized a promover a viagens espaciais, Antony Hegerty a demonstrar a sua magnífica voz e Run the Jewels a provocar tumulto.
Embora quase lotado, o Parque da Cidade não pareceu em nada outros ambientes de festivais de verão. O conforto prevaleceu, pelo que se podia ver um concerto sentado como de pé, que a experiência não ficava reduzida. Mas colocando de parte estes factos paralelos, o que importa é referir as performances dos artistas que deixaram a sua marca no Porto.
Banda do Mar
O fenómeno luso-brasileiro deu início às hostilidades deste segundo dia. Depois de vários palcos esgotados, tanto em Lisboa, como em Guimarães no início deste ano, Mallu Magalhães e companhia tiveram a primeira oportunidade de actuar num festival, em Portugal, para apresentar o álbum homónimo, que caiu no goto aqui dos tugas.
A pecar pela qualidade do som, que ora pelo vento que se fazia sentir, ora pelos instrumentos que abafavam a voz muito meiga da muy bela Mallu, ainda assim o concerto da Banda do Mar foi agradável, com o “Mais Ninguém”, “Mia”, “Muitos Chocolates” a surgirem no topo das preferências, para aqueles que estenderam a toalha no chão e se deitaram na relva, aproveitando assim o sol “maneiro”, como Marcelo Camelo (o mais interactivo com o público) definiu.
Yasmine Hamdam
Ligeiramente mais tarde, o palco ATP palpitava de curiosidade para receber a libanesa Yasmine Hamdan. Nas bocas do mundo desde que um dos seus temas figurou em Only Lovers Left Alive de Jim Jarmusch, a cantora trouxe uma mistura de Electronica e música árabe que revestiu a sua performance de um cariz litúrgico. Parecendo não ter grande à-vontade para estas andanças, Yasmine conseguiu no entanto assinar um concerto curto mas satisfactório, muito por força da sua bela voz e da riqueza das composições de Hal (a tal música), ou a mais festiva Aziza.
Giant Sand
Às 18h (mais coisa menos coisa), os EUA, mais particularmente o sul dos EUA, e o Palco Super Bock tornaram-se mais próximos. Giant Sand, liderados pelo Howe Gelb, entretiveram o público com a sua mescla de sons country, folk e rock (meio sulista, meio progressivo). Interactivo com o público do Porto, salientar Porto e não Portugal, porque “a malta é mais bonita e acolhedora cá em cima”, trouxeram sonoridades a lembrar Bob Dylan. Com novos álbuns lançados recentemente, como o Heartbreak Pass, do qual tocaram Home Sweet Home e House in Order, Giant Sand basicamente aqueceram o público para o grande final de tarde que estava para vir, no palco ali ao lado.
Patti Smith
Perder o concerto de Patti Smith no dia anterior já foi mau o suficiente, repetir a façanha nesta ocasião seria um autêntico crime. Provando que quem assiste por gosto não se cansa, bastou a Patti aparecer no palco NOS para um coro de aplausos irromper pelo público. Dona de uma voz cujo tempo não parece ter deixado grande mácula, a cantora percorreu o tomo musical que é Horses com a teatralidade e dedicação que sempre foram o seu apanágio. E em boa hora o fez, já que o álbum de 1975, gravado num período de convulsão social e económico, tem reflexos na actualidade na forma como aborda a anomia e o desnorte dos mais jovens.
A eterna frase “Jesus died for somebody’s sins, but not mine” deu o mote a Gloria, cantada a plenos pulmões pelo público, e Break it Up foi um bonito tributo a Jim Morrison, mas foi em Birdland e Land que Patti demonstrou as suas valências como uma das cantoras mais completas que o mundo já viu. Aliás, prova disso mesmo foi ter feito um reprise de Glória no fim de Land, o que teve tanto de surpreendente como de inteligente e caiu que nem ginjas com o público. Não foi só desse mítico álbum que se fez a festa. Para acabar em beleza, Patti Smith puxou dos galões para cantar dois dos seus mais emblemáticos temas: “Because the Night” e “People Have the Power”. Nesta última canção, Patti Smith exerceu mais acirradamente a sua faceta política, incentivando as pessoas a serem donas de si, todas em união. Com um mundo cada vez mais cínico e pessimista e sem grandes figuras a seguir, vozes como a de Patti Smith são um clarão no escuro e devemos aproveitá-las enquanto se mantêm tão viçosas como as rosas que a cantora ofereceu à plateia no fim
José González
Terminado o concerto de Patti Smith, assistiu-se a um movimento migratório colectivo, com todos a deslocarem-se para o palco ao lado para assistir o músico sueco José González. O Vestige & Claws, lançado este ano e ao qual se deu mais destaque neste concerto, aliado ao pôr-de-sol muito sui generis no Parque da Cidade, tornou mais aprazível o final do dia. José González, subtil com a sua guitarra, fez esquecer o facto que tinha uma banda a acompanhá-lo, tal era a majestia com que interpretava os mais variáveis temas, como o festivo Let It Carry On, do já referido novo álbum, ou a já célebre cover do Teardrop, dos Massive Attack. Mas como a fome já apertava, foi com infelicidade que não deu para ficar para assistir ao final que teve que todos esperavam, a afamada Heartbeats, que tirou o González do anonimato.
Sun Kil Moon
Se houvesse uma atribuição de prémios para as actuações, Mark Kozelek levava o troféu de inconsistência para casa, já que o palco Pitchfork encheu para assistir ao regresso do cantautor ao Porto, mas o resultado foi algo agridoce. Por um lado, Kozelek, que pareceu cansado e até alterado, esteve propenso ao excesso (a berraria em “Dogs” roçou o insuportável) e desconfortável sem guitarra. A sua folk de temas negros obsecada pelo detalhe narrativo e marcada por eventos pessoais é fruto de tanta honestidade que parece esgotar o cantor. Por outro, também mostrou a sua capacidade para tornar um concerto numa experiência memorável.
Para além das tiradas ácidas que o caracterizam, o set foi marcado pelo seu convite a Yasmine Hamdan para vir cantar “I Got You Babe” de Sonny and Cher, desafio que acabou com a cantora libanesa a murmurar as letras e Kozelek a vociferá-las. Um momento mais descontraído, portanto, vindo de um artista responsável por socos no estômago como Carissa e Richard Rodriguez Died Today of Natural Causes, habilmente acompanhadas por uma banda que contou com Vasco Espinheira e Steve Shelley. O concerto terminou com duas faixas do mais recente Universal Themes, The Possum mostrou ser algo desengonçada ao vivo mas This Is My First Day and I’m Indian and I Work at a Gas Station tratou de colocar o concerto nos eixos à medida que este chegou ao seu fim.
Spiritualized
Space Rock e noite são conceitos que andam de mão dada como cerveja e tremoços. Talvez seja por isso que os Spiritualized deram um dos concertos do festival. A histórica banda liderada por Jason Pierce, a beneficiar de muito bom som (uma constante no palco ATP), teria tido uma excelente performance independentemente das horas do dia, mas foi no breu que melhor se pôde apreciar a sonoridade psicadélica do grupo inglês. A viagem teve início com os trejeitos gospel de Lord Let It Rain on Me e seguiu por aí em diante passando pela pulsão rock de Electricity e pela contemplação de Shine a Light. Sem grandes provas a dar, o conjunto até se debruçou por paragens mais recentes da sua discografia, sendo um concerto marcado por mais imediaticidade do que se poderia esperar, pleno de melodias gloriosas a espaços com assomos de intensidade. Houve tempo no fim para uma versão de Walkin’ with Jesus dos seus descendentes Spacemen 3 e para Take Your Time. Decerto que quem tomou um pouco do seu tempo para ouvir os britânicos saiu muito satisfeito.
Antony & The Johnsons
O relógio marcava 00h15 e Antony Hegarty subia ao palco vestida de túnica branca, sem os Johnsons, mas acompanhada por uma orquestra composta por cerca de 50 músicos.. Por exigência da artista, não havia nada a decorrer nos outros palcos, pelo que foi natural o aglomerar de gente na encosta do palco NOS. Dado nos encontramos em clima de festival, a arriscada ideia de uma apresentação erudita compensou em parte, vingando pela replandecência orquestral ao ar livre e pecando na definição da bela voz de Antony, que por vezes não se evidenciou da forma clara que merecia perante o burburinho.
Apesar do repertório rico que trouxe, o ponto alto da actuação da cantora acabou por ser a versão orquestrada de Blind, um hit de 2008 de Hercules & Love Affair, ao qual emprestou a sua voz. A metafórica história de amor reprimida de Cripple and the Starfish e a Her Eyes are Underneath the Ground foram alguns dos temas de um concerto com cerca de uma hora, que ecoavam enquanto uma projecção teatral japonesa trazia riqueza semiótica ao espectáculo. Para final, estava guardado a flagelada Hope There Is Someone. No término da sua actuação, ficou a sensação de que este concerto teria sido mais apropriado numa sala de espectáculos com o seu público alvo bem definido do que propriamente num festival para curiosos.
Run The Jewels
Ariel Pink, Jungle ou Run the Jewels? Escolhas difíceis a fazer às 1:40 da manhã. E se alguns preferiram o polémico cantautor no palco Pitchfork e muitos outros foram ouvir a electrónica refrescante dos ingleses no Super Bock, um grupo bem composto de curiosos e fãs fervorosos foram assistir à estreia de um duo que mudou as regras do jogo no que toca à arte de fazer Hip-Hop. E-LP e Killer Mike, este ainda de braço ao ombro, incendiaram o palco ATP com a potência dos seus beats e a destreza das suas rimas, confirmando também exibir em palco a química que têm em CD. Num misto explosivo de temas dos dois álbuns, desde Banana Clipper a Close Your Eyes (And Count to Fuck), os dois rappers deixaram em alvoroço um público que pareceu ter as letras bem sabidas e aproveitaram bem o seu tempo para interações verdadeiramente engraçadas com a audiência (E-LP dizer que o seu sonho sempre foi meter o pessoal do Porto a dizer “Dick in the mouth all day” foi um claro destaque).
É complicado dizer ao certo o que distingue dos demais, se é a sintonia que exibem entre si, se são as larachas hilariantes que mandam, se é a produção bass-heavy e contundente de E-LP. No fundo não interessa o que fazem, mas sim que o fazem bem e o hype quanto à sua vinda justificou-se, encerrando com Angel Duster, tema que nem estava no alinhamento, mas que tocaram para satisfazer o pedido de duas fãs, mostrando que estes dois são uns bons malandros.
[Galeria do Dia]
Texto – António Moura dos Santos e Carlos Sousa Vieira
Fotografia (Galeria do Dia) – Luis Sousa
Fotografia (Capa) – © Hugo Lima | NOS Primavera Sound 2015