Foi entre os dias 18 e 21 deste mês que decorreu o BB Blues Fest 2015, um festival inteiramente dedicado ao blues e que, de ano para ano, tem vindo a crescer em qualidade e mediatismo. O Música em DX não quis deixar de marcar presença na IV edição deste evento e, ao terceiro dia, fomos tomar o pulso ao festival.
Quiseram os deuses que os dias em que decorreu o BB Blues Fest 2015 fossem dignos da chegada do verão. Com os termómetros a registarem temperaturas a rondar os 30 graus, o ambiente de descontração estava garantido. Mas se os dias estiveram quentes, as noites não se ficaram atrás, pelo menos a julgar por aquela em que pudemos estar presentes: a música que se testemunhou no dia 20 foi – tomando emprestado um termo ao universo do jazz – “hot”, e muito por culpa de um senhor que trata o blues por tu e que dá pelo nome de Slam Allen. Mas já lá iremos.
O cartaz deste ano do BBB Fest, que decorreu no Fórum Cultural José Manuel Figueiredo e no Parque José Afonso, incluiu alguns talentos em ascensão, diversos artistas e bandas já com provas dadas e músicos que se juntaram propositadamente para celebrar neste evento a sua paixão pelo blues.
Foi o caso da dupla formada por Paulo Brissos (guitarra elétrica e voz) e João Luz (dobro e harmónica), que deu o pontapé de saída a esta noite do festival. A organização do certame optou por iniciar cada noite de maneira informal, e para isso instituiu o Café Concerto: um espaço lounge, com chão de madeira, onde se podia tomar uma bebida enquanto os primeiros acordes da noite ecoavam no ar. E esses acordes foram os de Key to the Highway. O clássico foi interpretado pela dupla a meio gás, uma boa forma de entrar suavemente no serão.
Os espectadores, que continuavam a chegar, eram já em número de meia centena quando os músicos, mais soltos, espevitaram um pouco as coisas com um standard escrito por Willie Dixon, “My Baby Don’t Stand No Cheatin”, interpretado em ritmo de boogie.
Estava-se bem. A música, bem executada e beneficiando do progressivo à vontade dos músicos, transmitia ao público uma sensação crescente de descontração, fenómeno a que não foi alheio o ritmo meio shuffle que Brissos e Luz iam imprindo à atuação naquele momento.
O ponto alto chegou com a interpretação de Stormy Monday, com João Luz revelando apreciável fluidez e expressividade na harmónica e Brissos fazendo justiça ao clássico de T-Bone Walker.
Para o fim ficou um tema original de Paulo Brissos, Zé Ninguém, que na versão de estúdio conta com a participação de Rui Veloso. A colaboração faz todo o sentido: o tema podia bem ter pertencido ao álbum Ar de Rock, como os presentes puderam verificar pelas semelhanças de estilo. Terminava assim uma atuação competente e agradável dos dois músicos, um ótimo aperitivo para o que havia de vir.
[Paulo Brissos & João Luz]
O espetáculo continuaria agora no palco principal, o auditório do Fórum, batizado pela organização como Palco BB King, em justa homenagem ao grande bluesman que há pouco nos deixou. A música estava agora a cargo dos britânicos 24 Pesos, que arrancaram em ritmo de swing para uma prestação enérgica e bem oleada, pautada pela verve do líder Julian Burdock.
A banda passou em revista temas dos seus três álbuns, bem como clássicos como Get Out of My Life Woman (Allen Toussaint) e Red House (Jimi Hendrix) – esta com direito a um toque de língua na guitarra elétrica –, temas que integraram o medley inicial.
Muito coesos desde o início, os 24 Pesos enveredaram depois por um caminho menos fácil com o arrastado e algo esquizofrénico “Give Me Some Love”, em que a estrutura desnecessariamente complexa da música (ou falta dela?) acabou por a tornar um pouco alienante, situação que viria a repetir-se noutro tema mais adiante (Make a Man), curiosamente duas músicas do primeiro álbum da banda (The Boogie Worm, 2008).
Pelo meio do concerto ficaram bons momentos proporcionados pela destreza instrumental de Burdock, que parece ter uma predileção por acompanhar vocalmente os solos que faz na guitarra, mas também um momento menos feliz: quando se preparava para executar uma música numa cigar box guitar, e depois de fazer o número de retirar de dentro dela um charuto, verificou que a brincadeira causou uma falha na parte eletrónica do instrumento, impossibilitando a sua utilização. “Sorry folks, but that’s live music”, lamentou Julian enquanto se socorria de um dobro para remediar a situação.
A “Girl Like You”, já na reta final da atuação, contou com uma incursão 100% unplugged e a solo do líder da banda, em que ficou evidenciado o seu bom instinto musical. Para finalizar, um tema do último álbum (Do the Right Thing, 2015): Boom Boom…
[24 Pesos]
…Boom! Chega a vez de Slam Allen. E verdade seja dita, entrou-se noutra dimensão. A banda que o acompanhava começou a tocar e, passados alguns compassos, ouvem-se as primeiras notas da guitarra semi-acústica do músico norte americano, que tocava a partir do backstage: ficou claro desde essas primeiras notas que já estávamos num outro nível, um nível mais profundo, mais musical, mais genuíno. Instantes depois, lá entra em palco a figura simpática de Slam Allen, com um sorriso estampado na cara e gingando ao som de Let the Good Times Roll. “Slam Allen’s in town”, encaixou o frontman na letra da música, em jeito de aviso à navegação. A noite estava por conta dele.
Foi ao som do clássico “How Blue Can You Get”, o segundo tema que tocou, que Slam conquistou o público. Deixando o palco com a maior naturalidade, passeou-se pelo auditório enquanto solava. Cumprimentou todos aqueles por quem passava, com apertos de mão ou algumas palavras: um pouco de charme, sem dúvida; domínio das técnicas de entertainment, absolutamente; mas nenhum dos presentes poderá negar que a forma como Slam interagiu e se entregou ao público durante toda a atuação foi sincera, sentida e feita com absoluta humildade. De resto, os momentos em que “esqueceu” a guitarra e cantou com os braços abertos, com a cabeça inclinada para o alto, os olhos fechados e a mão caindo ocasionalmente sobre o peito, em atitude de soul e gospel, não deixaram margem para dúvidas de que o músico estava a expôr ali tudo o que dentro do seu coração está guardado.
Durante alguns momentos, Slam sentou-se numa das cadeiras da plateia e ali ficou a arrancar aplausos através das cordas da sua guitarra: quem conseguiu ver para além da espetacular qualidade musical do momento terá sentido aquilo que resume a postura e busca deste bluesman: comunhão, partilha, compreensão. E se na atuação anterior se tinha ouvido o comentário de que um auditório de lugares sentados não é o ambiente mais amigável para ouvir música que tem no ritmo e na liberdade as suas melhores qualidades, Slam Allen fez esquecer isso destruindo qualquer fronteira que ali pudesse existir entre público e artista.
Nas músicas seguintes houve espaço para muito blues, algum soul e também um pouco de rock ‘n’ roll (“Roll Over Beethoven”, “Good Goly Miss Molly”, entre outros clássicos que foram sendo introduzidos de improviso no set). Acompanhado por músicos competentes no piano, baixo elétrico e bateria, Slam foi descarregando todo o seu sentimento e boa disposição ao longo de cerca de hora e meia de concerto, que incluiu a convocação ao palco do líder dos 24 Pesos para um despique amigável. Quando Julian Burdock se debateu com a afinação da sua guitarra, com uma corda que se partiu e talvez com algum nervosismo, Slam reconfortou-o e disse-lhe para tocar como ele sabe, e notou-se que as palavras surtiram efeito.
Para o final, Allen guardou um dos temas do seu último álbum (Feel These Blues, 2015): uma rendição do clássico de Prince, “Purple Rain”, que interpretou com total entrega. A música prolongou-se por 14 minutos, a maior parte dos quais foi gasta numa peregrinação pela plateia em que o músico voltou a cumprimentar toda a assistência à medida que cantava sobre a harmonia de fundo as palavras “share my love”…
Entre sorrisos, abraços e mesmo algumas lágrimas furtivas em olhos de homens feitos, ficou uma certeza: nenhuma das pessoas que estiveram naquela noite do BBB Fest irá esquecer aquele concerto.
[Slam Allen]
Numa nota mais prática, há que tirar o chapéu à organização: conseguir ver um espetáculo desta qualidade por um bilhete de seis euros é como receber um presente de Natal em pleno junho. Obrigado.
[Ambiente]
Texto – Pedro Raimundo
Fotografia – Luis Sousa