De 2 a 5 de julho celebrou-se a palavra no Cais do Sodré. A palavra “enquanto unidade criativa, veículo do pensamento e da criação”. Foi esta a premissa do Festival Silêncio, que regressou após dois anos sabáticos para proporcionar, quase sempre a título gratuito, um generoso número de manifestações culturais: cinema, conversas, espetáculos, exposições, feiras, intervenções, workshops… e música. Motivo mais do que suficiente para o Música em DX dar corda aos sapatos e ir ver o que por lá se fazia.
Porquê Festival do Silêncio? O motivo exato da escolha do nome foi pairando como uma incógnita à medida que percorríamos as velhas ruas do Cais do Sodré. Porque não Festival da Palavra? Terá sido uma forma de destacar a importância que o silêncio tem na existência do som, já que o segundo só ganha realce se o primeiro existir? Será uma forma de dizer: no princípio era o silêncio…? Não sabemos. Em todo o caso achámos o nome bonito. E o festival também. Estivemos por lá nos dias 3, 4 e 5. Eis o que conseguimos ouvir nos intervalos do silêncio.
Manuel Cruz – Largo de São Paulo (3 de Julho)
Pouco passava das 22h quando Manuel Cruz e o resto da sua banda sobem ao palco que tinha por detrás a Igreja de São Paulo iluminada. Foi neste cenário que Manuel Cruz durante mais de uma hora cantou e encantou o público que, por sinal, era bastante. Com uma diversidade audaz de instrumentos a acompanhar, a voz lenta, meio rouca e penetrante que caracteriza este senhor começou a entrar pelos ouvidos dos presentes afirmando que sabia bem onde queria estar e era “algures perto do mar”. A poética das letras bem trabalhadas, sentidas e, por vezes, em tom de revolta foi-se desenvolvendo ao longo do concerto. Para além da introdução a músicas novas, pelo meio fomos prendados com músicas dos outros projectos de Manuel Cruz, como Supernada, Pluto e Foge Foge Bandido. Entre acordes de guitarra acústica e guitarra eléctrica, linhas de baixo bastante compostas e fortes, o público foi-se deliciando, acompanhando as letras tão bem sabidas e louvando Manuel Cruz. Este, que desta vez não despiu a T-Shirt, terminou o concerto com “Maluco” e tocou um encore de mais 2 músicas, terminando com a “Canção da Canção da Lua”.
The Brooms – Groovie Records (4 julho)
Sábado, 18 horas. À medida que nos aproximamos do final da Rua de São Paulo, uma música começa a insinuar-se e vai ficando cada vez mais forte. O som vem da pequena loja de vinis Groovie Records. Lá dentro, rodeados pelos espectadores que o espaço da loja permite, encontramos os três membros dos The Brooms exorcizando o calor abafado da tarde com um “rock a la 60’s”. O som é preenchido pelo Vox Continental de Carla (que em algumas músicas transitou para o baixo), transportado pela bateria de Elso e liderado pela guitarra e voz de Pinha, que vai animando as hostes com a agressividade com que ataca as letras. A essa garra não ficam indiferentes os transeuntes que vão passando na rua e que, de vez em quando, param para dar uma espreitadela. À medida que as músicas se sucedem vamos apreciando as diferentes texturas que dão vida à música dos The Brooms: mod, rockabilly, rythm & blues, psichobilly, um toque de punk… Numa palavra: rock ‘n’ roll. E de alta voltagem. De resto, música sem contemplações e que rimou bem com o ambiente vintage da loja, nos 40 minutos em que durou a atuação.
Não Simão – Palco Rua Nova do Carvalho (4 julho)
O trio Não Simão, que para este concerto de rua contou com os préstimos de Raquel Martins (sax barítono) e Marco Alves (trombone de varas), começou a mostrar aquilo de que realmente é capaz ao segundo tema da sua atuação, depois de um começo funky, tecnicamente competente mas um pouco morno, possivelmente devido aos problemas técnicos que inicialmente se fizeram sentir. Depois de aquecidos, os músicos dispararam para uma performance agradável, pautada pela multiplicidade de ritmos explorados com apreciável dinâmica e correção e pelas letras impecavelmente interpretadas pelo seu frontman, Simão Palmeirim. Com ecos de uma certa linha de cantautores portugueses, as músicas vieram tanto em tom de lamento como animadas pela vivacidade ska. O sentido de humor foi uma presença constante na postura da banda, tanto a nível das letras como do feeling, que o diga o homem que passou todo o concerto a dançar como se não houvesse amanhã. A fechar, perante um público rendido, uma música cujo título testemunha a um tempo o caráter mordaz e humorístico deste grupo: A Foice em Ricos.
B Fachada – Palco Praça de São Paulo (4 julho)
Foi já de noite e perante uma Praça de São Paulo cheia que B Fachada – ou Fachada? – subiu ao palco principal do festival. Acompanhado por um sintetizador e uma viola braguesa, revisitou temas dos seus vários álbuns em bom ritmo, proporcionando um concerto animado e bastante apreciado pelo público, que respondeu melhor, como é natural, aos temas mais dançáveis da sequência Afro-Chula, Tó-Zé e Pifarinho. Afinal, era sábado à noite e o álcool já começava a circular com alguma generosidade na corrente sanguínea. Mas mesmo no calmo – embora ritmado – Não Pratico Habilidades, o público mostrou que estava ali por verdadeira devoção ao músico e não apenas pela animação gratuita. O final do concerto chegou com o melancólico O Fim, mas não antes de haver lugar a um Deus, Pátria e Família em que a voz do cantor se arrastou caracteristicamente sobre as desenvoltas síncopes que executava no teclado, enquanto segurava uma das almofadas insufláveis que povoavam a parte traseira do palco.
JP Simões & Samuel Úria – Music Box (4 julho)
Foi com o mote “Bate Papo” que a dupla de músicos formada por JP Simões e Samuel Úria veio anunciada no programa do festival e, ao longo do serão que tomou lugar no Music Box, fizeram justiça a esse batismo. Estabelecido que estava que os músicos iriam alternar na execução das músicas, seria entre elas que tomaria lugar esse bate papo, tanto em forma de piadas e provocações amigáveis, como de desabafos e pequenas estórias de vida. Regadas a vinho tinto, a música e a conversa foram ganhando em inspiração à medida que o tempo passava, mas a fórmula acabou por ter um efeito perverso e a reta final da atuação estendeu-se em demasia, afetando o ritmo e a qualidade de uma performance que até certa altura tinha sido bem conseguida. Simões, sentado, privilegiou um reportório em inglês e um registo mais melancólico, enquanto Úria, de pé, ía percorrendo alguns dos seus temas mais recentes. Bastante afinado e musical o segundo, fazendo uso da sua facilidade de execução de harmonias e arranjos mais complexos o primeiro, foram levando a noite com descontração, para gosto dos seguidores que preenchiam as primeiras filas e que se tinham mostrado impacientes com o atraso do início do espetáculo. Um inesperado e prolongado belo falseto de Úria numa música que estreou ao vivo (Vem Por Mim) e a interpretação de Lenço Enxuto, do mesmo autor, foram dos momentos mais cativantes da noite.
Lavoisier – Jardim D. Luís (5 julho)
Na última tarde do festival, na relva que serve de tapete ao Jardim D. Luís, estava, em ambiente “woodstockiano”, quem veio ouvir os Lavoisier. Foi uma aposta ganha. Não só as condições ambientais estavam no ponto, com um sol saboroso e uma brisa refrescante, como o estava também o duo formado por Roberto Afonso e Patrícia Relvas. A grande musicalidade dos dois foi naquela tarde a prova de que não são precisos muitos instrumentos e efeitos para encher de música o ar: quando a qualidade existe, a simplicidade é a melhor fórmula. De resto, a performance foi plena de entrega e vivacidade, com destaque para Patrícia que, no seu bibe cinzento, cantou e saltou, dando largas à expressividade na interpretação dos temas, sobretudo de autoria alheia, que constituíram a ementa preparada para a ocasião. Com a guitarra a seu cargo, Roberto não deixou de fazer harmonias com a sua companheira ou de tomar, aqui e ali, as rédeas da música. Pelas bocas e mãos dos Lavoisier passou um pouco da obra de autores como Fernando Lopes Graça (Acordai) e José Mário Branco (Eu Não Me Entendo), entre outros, tendo também ficado representados os criadores anónimos de músicas tradicionais como Senhora do Almortão, tudo num registo de marca própria que procura trazer para a ribalta as qualidades portuguesas da palavra cantada.
Sallim – Palco Rua Nova do Carvalho (5 julho)
De volta ao palco montado por baixo da Rua do Alecrim, desta feita para ouvir a voz melodiosa de Sallim. A figura simpática desta menina, que põe em música os sentimentos do seu dia a dia, não deixa de cativar quem a olha. Há uma certa originalidade e frescura na forma de cantar, e as harmonias tomam por vezes direções inesperadas que acompanham bem a especificidade da letra. No universo lírico de Sallim há uma melancolia persistente que lembra um pouco o universo do Coelho Radioativo. A voz tem um timbre que se destaca com eficácia sobre a espacialidade dos efeitos que a guitarra faz pairar na atmosfera e está lá o mérito musical de fazer o ouvinte abstrair-se. Para quem lida bem com ambientes contemplativos, esta é definitivamente uma artista a ter debaixo de olho.
Zeca Medeiros – Praça de São Paulo (5 julho)
Escoltado por um teclado, duas guitarras e uma flauta, Zeca Medeiros tornou sua, a partir das 20:20, a Praça de São Paulo, que inundou com a sua voz cavernosa. Num concerto dedicado ao Syriza, mas no qual também couberam dedicatórias a Nelson Mandela, Zeca Afonso e “Mariana”, o músico açoriano, com a sua postura teatral e liberdade expressiva, deu corpo e voz a uma série de músicas que formalmente mostram influências de swing, burlesco, revista e música tradicional portuguesa, mas que são, acima de tudo, quadros vívidos sobre os temas que glosam, seja a timidez do artista em Camarim, a parada de figuras históricas evocada “em jeito de pedra filosofal” de Sombra Chinesa, ou a homenagem à vida ingrata do palhaço em Elogio do Palhaço. Entre temas mais pungentes e outros mais exortativos (“vamos fumar o cachimbo da paz”), Zeca Medeiros, munido do seu maço de letras, que partilhou com a convidada Filipa Pais (cantou Barco Feiticeiro e coadjuvou nas músicas finais), foi um digno representante da palavra, cumprindo na perfeição o fito do Festival Silêncio e merecendo os aplausos sentidos de um público que pôde viajar por paisagens pouco habituais.
Se é isto o silêncio, venham mais festivais como este.
Texto – Eliana Berto (Manuel Cruz) | Pedro Raimundo
Fotografia – Rita Justino