O Hugo Caldeira já anda pela cena Punk/Hardcore há cerca de 20 anos. Em 2000 fundou o punkpt.com, e entre 2006 e 2008 colaborou com a Xuxa Jurássica. Desde então, tem-se dedicado sobretudo à promoção de eventos. É um dos promotores do Refugees Welcome Benefit Fest que se realiza no próximo domingo. O Música em DX aproveitou a proximidade deste evento especial para estar à conversa com o Hugo.
Música em DX (MDX) – Consideras que, dentro do meio musical mais underground, está subjacente um maior activismo político e social?
Hugo Caldeira (HC) – Claro que sim, principalmente no Punk e no Hardcore, que sempre tiveram essa distinção. O Punk/Hardcore sempre lutou por ideais e valores, sempre esteve disponível para lutar contra a indiferença, para defender a tolerância, o respeito pela diferença. Dentro do género a história é longa. Por exemplo, em 1999, no conflito em Timor, realizaram-se vários concertos de homenagem ao povo timorense e às vítimas dessa guerra. Temos também apoiado eventos em beneficência dos animais, eventos de apoio aos sem-abrigo, através de recolha de alimentos e roupas. Por isso, historicamente, o Punk/Hardcore sempre esteve ligado ao activismo.
MDX – A ligação entre música e intervenção social é frequente nos dias de hoje, ou pelo contrário, achas que tende a desaparecer?
HC – Falando do Punk/Hardcore, o comercialismo do género levou um bocado à perda da mensagem, mas, ao mesmo tempo, convém saudar as raízes das bandas. E ao gostares de certa banda, vais procurar as raízes dela e vais-te identificar com um certo tipo de pensamento. Por isso, a mensagem nunca se perde totalmente. Utiliza-se a música para passar essa mensagem e, a partir daí, desencadear acções. Fazer com que quem a ouve possa também contribuir em algo. Mesmo dentro do mainstream, recentemente tivemos o boom de uma banda ligada ao Punk, o caso dos Green Day que, com o lançamento do American Idiot, utilizaram o álbum como crítica política. Mesmo os Pearl Jam sempre tiveram muito essa postura… Toda a gente pode ser punk, basta lutar e acreditar em algo. Não é o género de música que define o Punk, é a atitude.
MDX – Como surgiu a ideia de realizar o Refugees Welcome – Benefit Fest? Qual é a importância deste evento?
HC – O mais importante, antes de mais, é sermos solidários com o facto de existir gente a fugir da guerra, porque não podemos, simplesmente, ignorar e fingir que o problema não existe. Há também uma luta associada a isto, a luta contra a indiferença que se tem vindo a notar há muito tempo. A guerra na Síria não começou agora, e não é um caso único. Infelizmente, ou felizmente, dependente do ponto de vista, chegou à Europa. E ao chegar à Europa conseguiu uma maior atenção mediática, muito à custa das tragédias que lhe estão associadas. Isso fez com que se começasse a ver o lado mau do Ocidente, isto é, o ignorar de todo esta situação e, mesmo quando confrontados com ela, continuaram-se a construir muros e a fingir que os problemas não existiam. Isto gera nas pessoas o medo do desconhecido, o ódio, o racismo e a xenofobia, ideias que têm de ser combatidas. Por isso, este evento, para além de apoiar os refugiados, procura também alertar para estas situações.
MDX – Sentes que em Portugal existe preconceito relativamente à questão dos refugiados?
HC – Tenho a certeza que existe. Por exemplo, estive na manifestação de apoio aos refugiados e, no mesmo dia e no mesmo momento, houve uma contra-manifestação do PNR. Isto também funcionou como incentivo à realização do evento de Domingo. Mesmo dentro do Punk/Hardcore, nomeadamente em posts no facebook, vi pessoas do nosso meio com comentários de ódio. Isto, vindo de pessoas que, dentro deste meio, não deveriam ser apologistas destas ideias. Presenciei vários casos, fui, inclusive, uma das pessoas que interviu, e fiz questão de tentar acabar com esta propaganda de ódio, porque o medo e o desconhecimento não justificam a discriminação, nem o racismo. É normal termos medo, o medo é um dos sentimentos primários do Ser Humano, mas o que nos define não é a nossa cultura, nem a nossa religião. E quando ignoramos uma crise humanitária baseando-nos nestas discriminações, é o mesmo que sermos nós a apontar a arma a essas pessoas que estão a morrer. Porque ao virarmos as costas, estamos a condená-las à morte.
MDX – Como é que se combatem esses preconceitos? Particularmente, qual é o papel da música?
HC – O papel da música, e em particular do Punk/Hardcore, é passar a mensagem, e daí passar à acção. A música é fundamental, porque é o maior veículo capaz de o fazer. O problema é que muita gente não percebe a mensagem, e isso acontece muito no Punk/Hardcore. Isto nota-se quando, dentro do próprio género, existem pessoas que estão lá apenas pela batida, pela melodia, porque aquilo soa bem… e isso não devia acontecer. Não devia mesmo. A mensagem é tão importante, ou até mais, do que a música.
MDX – Esta nova geração de miúdos do Punk/Hardcore não tem a mesma força, nem ideais tão fortes como a geração da época dos X-Acto, por exemplo?
HC – Sabes que isso é perigoso [risos]. Para já é importante contextualizar as épocas, isso faz toda a diferença. Estamos a falar de uma altura em que não existia Internet, não havia globalização da música. Existiam meia-dúzia de bandas realmente mobilizadoras em cada zona do país. Hoje em dia, tens acesso à Internet, tens a “facilidade” de puderes ter um instrumento e de puderes aprender música. Posso dizer que na altura a cena era mais unida, isso não vou negar. Antigamente, as salas eram o Ritz e mais uma ou outra em Lisboa, e isso fazia toda a diferença. A partir de 2000, só em Lisboa, existiam umas seis ou sete salas com concertos, daí ser fácil acontecer uma certa dispersão. Não quero, com isto, dizer que as bandas novas têm menos importância. Acredito nos jovens, e continuamos a ter muitos miúdos nos concertos, porque os velhos já não aparecem [risos].
MDX – Achas que os jovens de hoje interiorizam a mensagem, ou simplesmente entram na cena e desaparecem passado pouco tempo?
HC – É verdade, são poucos os jovens que entram e que acabam por ficar. Lá está, isso vai ao encontro da vida de hoje em dia, onde tens acesso a imensa coisa que antigamente não tinhas. Hoje gira tudo à volta do facebook. Mas ainda existem jovens que se esforçam, e ideias que estão a renascer, como o ideal do straight edge. A “moda” pode passar, mas enquanto durar é importante, porque esses miúdos vão convidando outros a aparecer. Por exemplo os Sex Pistols, duraram apenas dois anos, mas o seu legado vai durar para sempre. Eu não me importo que esses miúdos fiquem cá apenas dois anos, desde que, nesse período, contribuam positivamente dentro do meio. Mesmo o Refugees Welcome – Benefit Fest poder ser um evento isolado, mas se tiver determinado efeito, naquele momento, já é muito importante, e valeu a pena.
MDX – Existiu algum critério especial na escolha das bandas para o Refugees Welcome – Benefit Fest?
HC -As bandas presentes neste cartaz foram algumas das que aceitaram participar. O convite foi estendido a diversas bandas, e muitas outras demonstraram interesse, mas, por motivos logísticos, não foi possível aceitar todas. A ideia era contar com as “bandas-chave” da cena Punk e Hardcore. Tendo em conta aquilo que referi anteriormente – sobre os problemas dentro do meio- era importante contar com essas bandas, que tanto movem os que se preocupam, como os que não preocupam com a questão dos refugiados. O critério era principalmente esse. Estendemos o convite também aos Tara Perdida, que se mostraram bastante interessados, mas, infelizmente, não tinham possibilidade de estar presentes. O mesmo se sucedeu com os Devil in Me, que também não conseguiam marcar presença. O caso dos Devil in Me merece uma nota especial, uma vez que foram das poucas bandas que expressaram a sua posição, relativamente aos refugiados, publicamente. Muitas bandas, não só em Portugal, mas também no resto da Europa, pecaram um bocado neste aspecto, pecaram por omissão. Contam-se pelos dedos as bandas que foram capazes de a expressar, enquanto banda. E isso é preocupante.
MDX – No cartaz encontramos bandas de Punk, de Rock, de Hardcore, e até um projecto de Hip-Hop straight edge. Esta diversidade no cartaz foi propositada?
HC – Sim, foi. Por ser um evento Punk/Hardcore, tínhamos que ter bandas de Punk e bandas de Hardcore, logicamente. Contudo, encontramos um problema em encontrar uma banda straight-edge com disponibilidade, e isso fazia falta, devido ao grande intervencionismo que existe na sua mensagem. Tentamos que os New Winds fizessem uma reunião, mas tal não foi possível. Estendemos o convite aos Awake e aos Clean Break, mas, devido a questões logísticas, também não foi possível. E o XGaeaX surgiu um bocado por aí, porque mistura o Hip-Hop com o straight edge, o que é importante. Depois temos o reunion show dos Easyway, que são uma banda de referência, dentro do género mais melódico, em Portugal. Os Viralata que, dentro do Punk cantado em português, são uma referência, assim como os Artigo 21, apesar de ainda serem uma banda nova. Os Shape, uma nova banda dentro do Hardcore, capaz de ser expor publicamente sobre determinados assuntos importantes. Os FPM, banda relativamente recente que mistura Punk, com Hardcore e com Rock. E claro, os For the Glory, uma das maiores referência do género em Portugal. Queria também realçar o facto de o Music Box ter disponibilizado a sala gratuitamente, assim como as bandas, que não nos cobraram nada para vir tocar.
MDX – Pensas que a diversidade no cartaz vai conseguir unir públicos diferentes no evento?
HC – Sim, e é esse o objectivo. Antigamente as pessoas iam aos concertos, viam a banda que queriam, e iam à vida delas. Por isso, vamos intercalar os diferentes géneros entre si, e dessa forma manter as pessoas lá. Desta forma, o público vai estar lá por uma causa e não apenas para ver as bandas. O próprio formato do festival é diferente do habitual: não vão ser concertos normais, vão ser showcases de 25 minutos cada banda. Pretendemos fazer do evento uma acção, uma forma de cada um ter a sua palavra, e evitar que a mensagem se perca.
MDX – Para além dos concertos, o evento conta ainda com dois oradores a Shahd Wadi e o Rodrigo Rivera. Como surgiu esta ideia?
HC – A ideia vem de uma tradição no Punk/Hardcore: juntar debates aos concertos, e não fazer apenas um evento musical. A Shahd Wadi, do Comité de Solidariedade com a Palestina, vem sensibilizar a crise dos refugiados para além da questão Síria. Sendo alguém que é activista, e filha de refugiados de uma guerra que ainda hoje gera refugiados, vem dar uma visão diferente do problema. Já a participação do Rodrigo Rivera, do SOS Racismo, vem ao encontro das causas que geram a indiferença – o racismo, a xenofobia e a discriminação.
MDX – Quais são, então, as expectativas para Domingo?
HC – Bem, temos tido um bom feedback. O problema é que só temos lotação para 300 pessoas, a sala não aguenta mais [risos]. Já temos cerca de 600/700 a dizerem que podem ir. A mensagem passou além do Punk e do Hardcore, isso é bom. Tivemos também diversos apoios, que ajudaram a colocar o evento na agenda. A previsão do tempo não é lá muito boa, mas, em relação a esta questão, é importante relembrar que os refugiados passam por obstáculos criados pelas más condições atmosféricas, e ainda assim são capazes de os ultrapassar. Portanto, por favor, não permitam que isso seja um obstáculo para ir ao evento! [risos].
MDX – Gostarias de deixar um apelo às pessoas que, mesmo não apreciando estes géneros musicais, querem apoiar a causa dos refugiados?
HC – Às vezes, as pessoas lembram-se que estamos a atravessar uma crise económica, e então essa crise desculpa o facto de não existir tanta disponibilidade para ajudar. Eu gosto de relembrar que pior do que uma crise económica, é uma crise de valores. Há mais eventos como este – este é apenas um deles -, e se preferirem ajudar através da música, que assim seja. Para além disso, existem outras formas de ajudar, como por exemplo o voluntariado. Portanto, mediante as nossas possibilidades, todos podemos ajudar, e mobilizar também é uma grande ajuda. A causa em si já devia juntar toda a gente, não tanto pelas bandas. E é importante relembrar que isto não é sobre a Síria, é sobretudo sobre ajudar Seres Humanos, independentemente da sua religião.
https://www.youtube.com/watch?v=GPg7ZxpYpyo
O evento Refugees Benefit Welcome Fest acontece no Musicbox Lisboa no próximo dia 18, domingo, a partir das 15h30, terá a presença das seguintes bandas
For The Glory
Viralata Punk
Easyway (reunion show)
GAEA (straight-edge hip-hop)
Artigo 21
SHAPE
F.P.M.
e contará com o apoio de MUSICBOX LISBOA, Art of Samuel Lucas e da Infected Records. Mais informação no evento oficial do evento no facebook.
Entrevista – Pedro Reis
Fotografia – Luis Sousa