Há um encantamento infantil em tudo o que fazem, um deslumbramento próprio de quem pretende apresentar uma novidade por segundo Não será totalmente absurdo aproximá-los do universo de Jacques Tati. Talvez por isso, vão comemorar dez anos e, tratando-se da Lovers & Lollypops podemos afirmar com 100% de certeza que haverá festa na Aldeia. Transformaram antigo armazém, onde outrora uma burguesia semi-endinheirada e filha da UE comprava os cortinados, em coreto para as celebrações. Nós começámos uns dias mais cedo, em casa de pasto lisboeta, outrora sem plasma, e entrevistámos um dos projectos mais peculiares da editora portuense – MEDEIROS\LUCAS.
Música em DX (MDX) –10 anos da Lovers & Lollypops. O que têm preparado para a festa de Sábado e qual a vossa relação com a editora?
Lucas – Estamos a compor músicas para um novo disco, mas somente na altura decidimos se as tocaremos ou não. De qualquer forma incidirá sobre o Mar Aberto (2015). A nossa relação com a Lovers surge no Matos em Festa (Ovar). Eu fui tocar com o anterior projeto que tinha com um amigo, na área da eletrónica e só com laptops. Lá encontrei o Fábio Costa e a partir daí tornámo-nos amigos. Tinha uma maquete feita e decidi enviar. Eu já conhecia a Lovers, nomeadamente do Milhões de Festa e das bandas que têm vindo a editar Não sou particular fã de tudo o que fazem, mas depois comecei a ter mais atenção à programação e vi que havia ali uma intenção. O Fábio tem-nos dado mais apoio. Ele ouviu o que lhe enviei, gostou e a partir desse momento decidiu acarinhar este projecto.
MDX – E como é que o Carlos começa a fazer parte de MEDEIROS/LUCAS?
Lucas – Uma semana depois do Matos em Festa fui dar um concerto nos Açores com um projecto anterior, O Experimentar Na M’Incomoda, em São Miguel. Eu e o Carlos já temos uma relação de largos anos. Mas uma semana antes desse concerto, mais coisa menos coisa, decidimos falar e trabalhar as ideias que já tínhamos estado a discutir anteriormente. Nesta altura, juntámo-nos somente com um esboço. Muito naturalmente começámos a trabalhar, mas sem qualquer tipo de pressão para se editar um disco. Tanto é, que só volto a falar com o Fábio seis meses depois. Demorou aproximadamente um ano todo o processo.
Eu tinha uma guitarra, mais um gravador e com as coisas que o Carlos já tinha começámos por ver o que havia, fazer uma primeira seleção e trabalhar um pouco isto. A segunda fase é a dos temas novos. O disco é sensivelmente meio – meio, isto é metade de temas novos com material pré-existente, algumas com mais de 20/30 anos.
MDX – MEDEIROS/LUCAS é um projecto de geometria variável. Na Aldeia vão tocar com o resto da banda? Como gerem entre duo e banda?
Lucas – No Porto iremos só tocar os dois. Nem sempre é fácil andar com 5 pessoas atrás, por isso muitas das decisões passam, naturalmente, pela disponibilidade de cada um. Quando somos os dois às vezes basta entrar no Expresso e estamos no local do concerto. Depois também temos que ver que alguns elementos também estão envolvidos noutros projetos.
MDX – Como surgiram os convites aos outros elementos?
Lucas – Quando comecei a produção do disco vi que aquilo estava demasiado eletrónico, então a ideia inicial começou por ser com dois percussionistas. Entretanto comecei por ouvir umas coisas de Tigrala. Através de uma amiga em comum, ela pôs-me em contacto com o Ian Carlo Mendonza – baterista. Falámos, tomámos um café, tocámos um pouco e ele continuou interessado. Ao ver que tinha aquele “animal da música” abandonei a ideia dos 2 percussionistas e ficar só com o Ian. O disco é gravado com músicos que já vinham d’ O Experimentar Na M’Incomoda, no caso do teclista o Augusto, que agora toca com a Selma Uamusse e com o Rodrigo Leão, eu cresci com ele, e só mais tarde o Lucena, não no disco, mas quando começámos a tocar ao vivo. Por razões profissionais o Fausto teve de abandonar e precisávamos de alguém que soubesse fazer máquinas e baixo e ficou o Lucena. Basicamente, somos nós os 4 – Eu, o Carlos, o Ian e o Lucena, depois vai-se alargando. No disco também surgem outras colaborações como a Mitó, o Gil Alves. É óptimo quando a nossa vontade de alargar a mais pessoas é correspondida, tem mais piada do que andar a fazer isto sozinho.
MDX – Será demasiado enquadrar-vos como um projecto marginal dentro da Lovers?
Lucas – Alternativo à própria Lovers? (risos) Se calhar somos o mais mainstream. Na altura lembro-me de ter essa conversa com o Márcio (Lovers). Eu estou na Dinamarca, a malta está no Porto e, como compreendes, nem sempre é fácil encontrarmo-nos. Falávamos por Skype, mas só nos conhecemos fisicamente no dia do lançamento do disco. Ambos chegámos à conclusão que mais importante que o resultado sonoro, o que distinguia este projecto era uma certa atitude punk. Uma maneira muito própria de fazermos as coisas. Ou seja, isto somos nós. É muito uma atitude desafiante que nos move.
MDX – Voltando um pouco atrás e recordando a atuação no CCB durante os Prémios Megafone d’ O Experimentar Na M’Incomoda, podemos afirmar que este hibernou ou MEDEIROS/LUCAS é a sua extensão óbvia?
Lucas – Deixa-me dizer-te que esse concerto correu muito mal. Foi a primeira vez que tínhamos tocado juntos, foi uma coisa que fiz muito sozinho e com a ajuda preciosa do técnico de som aquilo foi-se compondo. Entretanto, fomos selecionados e a pergunta é – como é que a gente faz? Erámos um pouco inexperientes, havia falta de tempo, eu vinha da Dinamarca, o Carlos dos Açores. A coisa só podia ter corrido mal, mas esse é o início do Experimentar. Mas, também não me importo de arriscar e os erros fazem parte. Vai-se crescendo e é nesses concertos, em que o Carlos participa, que se vai construindo a relação de amizade, a troca de ideias. Até que chega ao ponto que o Experimentar não hiberna, o Experimentar morreu. Estou contente de o ter feito, mas conceptualmente é aquilo e não faz sentido fazer outras coisas mantendo o nome. Dois discos é mais do que suficiente. Olhando em retrospectiva o que mais me agradou foi poder trabalhar sobre o reportório já existente, ou seja poder trabalhar, moer, mexer em canções que sobreviveram ao tempo. Vou utilizar uma frase que já utilizei muitas vezes – MEDEIROS/LUCAS é o projecto que o Experimentar pariu.
Carlos – Morreu de parto. (risos)
MDX – Quando se sobrevoa o oceano Atlântico em direção aos EUA, por exemplo, e se olha para baixo vê-se muito nitidamente os Açores. É uma imagem muito forte. Na vossa música, quer ao nível das letras, que na estrutura a presença dos Açores também é assim tão forte?
Lucas – A música açoriana é feita, como todas as outras, por pessoas que se movem. Os Açores é já de si uma miscigenação de várias culturas – vais à Terceira, que tinha uma parte da corte espanhola e ainda vês bué touradas, passos dobles; vais a Santa Maria e ouves coisas completamente magrebinas, vais às Flores, onde as baleeiras passavam e tens mais influências americanas. Estou a dar 3 exemplos para lá dos fados e de toda a música portuguesa. Obviamente, ficando limitado àquele espaço físico, certamente que ele exerce alguma influência. É natural que a haja, embora nos queiramos separar desse rótulo. Eu vivi lá 18 anos, o Carlos vive lá. Há uma certa condição natural, talvez.
MDX – Outra marca forte é a forma como dizem as palavras, como as declamam. Qual a razão?
Carlos – Para mim é mais uma limitação que uma opção, não consigo fazer melhor, não consigo cantar. É só isso.
Lucas – As letras não são nossas. Eu e o Carlos, mais o Carlos até, somos leitores compulsivos. Ele é uma espécie de Dom Quixote, qualquer dia enlouquece de tanto ler (risos). Por exemplo, no Mar Aberto é de poetas que ele já conhecia e que trouxe para o projecto, noutras fomos literalmente para a Biblioteca de Ponta Delgada pesquisar sobre a ideia de mar e romance. Para o disco que presentemente estamos a gravar convidámos um escritor de São Miguel, o João Pedro Porto. Descobri-o numa crónica do Valter Hugo Mãe no Público. Este novo disco já é um processo totalmente diferente – estamos a trabalhar com uma pessoa, discutimos. Acaba por ser uma discussão a três.
MDX – Outro elemento distintivo no Mar Aberto é a capa. Porquê uma romã e aquela imagem de natureza morta?
Lucas – Isso é mérito do artista. A capa é da autoria do Tiago Bom. Conheci-o em Copenhaga, amigo de amigos. Como já tinha feito a capa do segundo disco do Experimentar e como correu muito bem, porque não? Falei novamente com ele e enquanto assim o quiser será o autor das nossas capas.
Ele baseou-se nas naturezas mortas e na imagem da romã, que simboliza, com algumas nuances, a prosperidade, a felicidade. É também um dos poucos símbolos comum à cultura judaica, cristã e muçulmana. O disco reflecte muito a ideia de encontro – passa pelo mediterrâneo, pelo norte de África, um pouco pelo levante, Andaluzia, Alentejo e Açores. Uma forma de representar a união entre culturas. Aliás, a capa original era outra coisa. Ele fez aquela imagem para estar na contracapa do digipack, mas por muita pressão e discussão foi decidido que aquela imagem iria para a capa e não para a contracapa. A imagem original que o Tiago tinha é o resultado de uma viagem que tinha feito a Beirute e do trabalho com miúdos sobre D. Quixote. Eram uns rabiscos de miúdos com o Dom Quixote a afogar-se. Mas nós e a Lovers começámos a pressioná-lo – é a romã, é a romã, é a romã, é a romã, é a romã, é a romã, é a romã.
MDX – Também se nota esse cuidado nos vídeos.
Lucas – São ambos do Gonçalo Tocha. Este que acabou de sair é o Navio. Conheci o Gonçalo entre o primeiro e o segundo disco do Experimentar. Ele tinha ido apresentar o documentário sobre o Corvo em Copenhaga, num festival semelhante ao DocLisboa. Ele tinha estado nos Açores, havia uma data de pessoas em comum e pareceu-nos ser a escolha natural, tanto neste como o anterior, a Canção do Mar Aberto.
https://www.youtube.com/watch?v=9LRvJva_mn8&feature=youtu.be
MDX – Voltando aos concertos que andaram a fazer pelo país. Quais as recordações que guardam?
Lucas – É só de Lisboa a norte. A sul de Lisboa nunca tocámos. Lisboa sempre nos tem recebido bem, Musicbox no concerto de apresentação, em Alfama que não estava nada à espera do respeito e compostura do público. Nota-se um calor nas pessoas. Na Horta por razões emocionais, o Tremor também foi especial, naquela igreja gigante. Depois há um concerto em Braga, numa salinha muito pequena e nós os dois e oito pessoas que estavam mesmo lá para ouvir, e no outro lado do espectro o Milhões, com um som sensacional e fazer parte da Festa e daquele cardápio tão diverso, a tal idiossincrasia transversal a todos os projectos. Lamego correu bem, as pessoas trataram-nos muito bem e tirando os Açores foi a única oportunidade de apresentar aquilo num teatro. E faz diferença.
MDX – E agora?
Lucas – Agora é fazer um disco novo e preparar uma digressão que espero seja só de auditórios (risos).
Entrevista – João Castro
Fotografia – Nuno Cruz