Backstage

Entrevista com Ricardo Dias, frontman dos For The Glory

Chama-se Ricardo, mas toda a gente o trata por Congas. Começou na cena punk/hardcore quando tinha 12 ou 13 anos, e desde então é nela que se sente bem. Em 2003 foi um dos membros fundadores dos For the Glory, uma das bandas de referência dentro do hardcore europeu. É vocalista, apesar de considerar que não sabe cantar. Sente que, muitas vezes, a cena hardcore se fecha sobre si própria e defende que é importante sair do casulo e espalhar a mensagem para as pessoas de fora. Foi pai recentemente, e conjuga a sua actividade na banda com outras actividades dentro do mundo musical, que sempre soube que iria pautar o seu percurso.

20151203 - Entrevista - Ricardo Dias "Congas" @ Bica

Música em DX (MDX) – Antes dos For the Glory tiveste outros projectos. Que factor consideras determinante para que a banda já tenha ultrapassado a marca dos 10 anos de existência?

Ricardo – Nos outros projectos éramos mais novos, andávamos ainda à procura do nosso lugar. Eram bandas com alto teor político, também de straight-edge e veganismo. Mas à medida que vais crescendo vais acabando por ir absorvendo influências da vida, do trabalho, do dia-a-dia, das pessoas com quem lidas. Com For the Glory houve aquele “click”, porque queríamos fazer uma cena pesada como Portugal não tinha. Depois tem que ver também com a questão interpessoal, com o sacrifício. É como estares numa relação [risos]. Já tivemos altos e baixos, mas o importante é o pessoal dar-se bem, ter perseverança e querer continuar a tocar. É querermos continuar a estar juntos, apesar de já termos todos 30 e tal anos e de cada ter a sua vida. A cena porreira, depois destes anos todos, é ainda nos sentirmos relevantes, sentirmos que a nossa música e as nossas letras ainda têm algo a dizer.

MDX – Vêm de um fim-de-semana em Rennes, onde tocaram no Superbowl of Hardcore Festival. Como foi a experiência?

Ricardo – Rennes fica numa zona de França que sempre recebeu bem For The Glory. Em 2004 ou 2005, na nossa primeira tour, fomos lá tocar e a cena hardcore em Rennes estava muito morta, não se passava quase nada. Tocámos num antigo armazém e o concerto foi muito bom. Apareceu imensa gente e acabamos por fazer parte da história daquela zona. Desde aí que os nossos concertos lá são sempre muito fixes. Neste último fim-de-semana, como já não tocávamos naquela zona há mais ou menos dois anos, pensamos que íamos estar um bocado deslocados. Mas começamos a tocar e o pessoal estava todo maluco, mesmo quem não conhecia as letras fingia que conhecia e cantava, berrava aquilo que lhe ia na alma. Foi mesmo muito bom. E é óptimo ires tocar lá fora, fazeres aquilo que gostas e ao mesmo tempo mostrares o que se faz cá em Portugal.

MDX – Em 12 anos de banda já lançaram quatro álbuns de originais. Consideras que, ao longo do tempo, a mentalidade da banda foi mudando ou ainda se movem pelos mesmos valores que tinham no início?

Ricardo – Quando For the Glory apareceu a ideia era chocar. Os concertos ficaram mais “violentos”, trouxemos uma ideia de mosh pit que ainda não existia cá. Era uma mentalidade um bocado “burra”, aquela ideia do “bora lá partir isto tudo”. Obviamente que vais crescendo e começas a querer pôr as tuas ideias na música. O que nunca mudou foi o facto de considerarmos que é possível aliar a ideia de energia e agressividade com uma maior consciencialização. Sempre quisemos ter letras sobre o dia-a-dia, sobre as nossas vivências, sobre os problemas das pessoas. Quando em 2010/2011 rebenta a tal crise económica que eles inventaram, estávamos a trabalhar no Some Kids Have No Face e sentimos que tínhamos que escrever sobre isso. Sobre a ideia de que somos números, que somos códigos de barras.

MDX – O Drown in Blood e o Survival of the Fittest são álbuns mais focados em questões pessoais. Já no Some Kids Have No Face e, particularmente, no Lisbon Blues nota-se uma maior crítica política e social.

Ricardo – Sim, essa ideia sempre esteve dentro de nós. Mas, no início, não queríamos colocar isso na nossa música, queríamos fazer algo mais pessoal. Quando aparecemos já existiam muitas bandas, como os New Winds ou os Day of the Dead, que tinham esse lado mais político. Entretanto, as cenas mudaram e, quando em 2009 grande parte dessas bandas acabam, fica um certo vazio. Tendo em conta que For the Glory não toca só dentro do meio hardcore e que também tocamos em festivais de metal, porque não aproveitar isso para tentar chegar a mais gente? Passar a nossa mensagem através da música. Sinto que a cena hardcore, muitas vezes, fecha-se muito sobre si própria e tem medo e vergonha de tocar para as pessoas de fora. Quando isso acontece, as bandas acabam a pregar para convertidos. Nesse sentido, acho que For the Glory aproveitou a sua posição para passar a sua mensagem. Para além disso, é um bocado aquela ideia de que começamos a crescer e a ter que enfrentar os problemas do dia-a-dia. Já nao é só aquela ideia do “ah, o meu amigo atraiçoou-me”. Tomamos consciência de que estamos a pagar uma crise que não fomos nós que criamos, e a certa altura sentimos a necessidade de começar a escrever sobre isso. Chateia-me também a ideia do politicamente correcto, a ideia de que existem determinados “standards” da cena hardcore. Nós fazemos aquilo que achamos que temos de fazer.

MDX – Achas que essa alteração no foco das vossas letras reflectiu-se numa mudança de sonoridade?

Ricardo – Não, mantivemos sempre a nossa cena. Foi um processo gradual. O Drown in Blood é escrito por um grupo de pessoas e depois algumas dessas pessoas saíram da banda, o Survival of the Fittest é escrito por outro grupo… Acabamos por ficar com os “inputs” de toda a gente que vai passando pela banda. Toda a gente acaba por dar o seu contributo, e a cena fixe é que todos ouvimos mais ou menos as mesmas coisas [risos]. Então acabamos por ficar na mesma linha. Podemos ir numa cena mais old school, mais quebrada, ou tentar meter uma melodia ou outra… Mas cantar não é minha praia, não sou nenhum rouxinol [risos]. Tem que haver aquele equilíbrio quando escrevemos as músicas, por isso acho que não mudamos assim tanto. Mudou a minha voz, agora já berro e não fico rouco.

MDX – Recentemente, o Sérgio Bernardo saiu da banda. Qual foi o impacto desta saída?

Ricardo – O Sérgio foi um dos membros fundadores de For the Glory. Ele vai tirar um curso e, como tal, não iria ter tempo para a banda. Foi ele próprio que nos disse isto, que iria estar super ocupado com o trabalho e com o curso. Entretanto, ele começou a tocar com Grankapo, uma banda que não toca tão regularmente, e por isso consegue conciliar as duas coisas. Já com For the Glory seria mais complicado porque também tocamos fora de Portugal, e isso acabaria por lhe retirar tempo. Por exemplo, na altura em que ele estava na faculdade, houve uma tour em que não pôde estar presente porque tinha exames. Nisso, nós sempre fomos mais punks, desistimos todos da escola. Ele não, sempre foi mais regrado do que nós. Foi só isso, não houve qualquer problema. A porta está aberta para quando ele quiser voltar. Para já, vamos ficar só quatro na banda, não tencionamos ter um novo membro. Em alguns concertos podemos ter alguém a tocar connosco, porque por vezes necessitamos de sentir o calor de tocar com duas guitarras. Mas para já estamos quatro e estamos muito bem. Há algum tempo que o ambiente não estava tão positivo, e isso é muito importante.

20151203 - Entrevista - Ricardo Dias "Congas" @ Bica

MDX – No facebook anunciaram que em 2016 vão lançar um novo disco. Como está a decorrer o processo de criação?

Ricardo – Começamos agora a escrever as músicas. Já temos algumas ideias, algumas bases. Vão ser à volta de 10 ou 11 músicas, como é o nosso registo habitual. Pelo que estou a perceber, está a ser um bocado regresso às origens, está mais “bujarda”, mais “in your face”. Não sei se será por andarmos a tocar com algumas bandas de thrash metal. Existem tantas influências na nossa vida que, ao tocar com tantas bandas diferentes, acabamos por ir buscar influências de todas elas. Não vamos inventar a roda, isso é um facto. Vamos manter a nossa cena, continuar a fazer aquilo que gostamos. Gravar é uma grande seca. Não é no disco que se sente uma banda de hardcore. Uma banda de hardcore tem que ser sentida ao vivo.

MDX – Portugal está a passar por uma crise, não só económica, como também social. Sentes que as bandas de hardcore estão a abordar esta questão de uma forma eficaz?

Ricardo – Isso vai um bocado ao encontro do que disse à bocado. Enquanto aquelas bandas com um teor mais político tiverem vergonha de sair do seu casulo e mostrar às pessoas de fora que têm ideias, as cenas não vão mudar e o impacto nunca será eficaz. O impacto acaba por se reflectir apenas nas pessoas que já sabem a mensagem, que já sabem o que estás a dizer. A cena porreira é quando sais da tua esfera, e vais para uma esfera diferente tocar noutras pessoas. Mostrar que isto não é só música rápida e violenta, que também existem ideias por trás. As bandas em Portugal são todas diferentes. Tens bandas como os Trinta e Um que já vêm da década de 90, e as letras deles sempre tiveram esse teor político e continuam a ser relevantes. Acho que a importância do hardcore é isso, ter letras relevantes com a consciência de que podemos fazer coisas fora da prórpia cena. Não podes ter vergonha e acabar por esconder as tuas ideias. Para além disso, considero importantes os concertos de beneficência. Durante todo o ano existem iniciativas em que podemos ajudar, e é aí que o hardcore faz a diferença.

MDX – Já estás na cena hardcore há muito tempo. Olhando para trás e para os dias de hoje, sentes que o movimento hardcore melhorou em Portugal?

Ricardo – Bem, é sempre uma questão um pouco agridoce. Antigamente, tinhas uma vertente de intervenção, e por outro lado tinhas um lado mais superficial. Quando X-Acto acabou e o Ritz fechou, a cena hardcore teve um decréscimo gigante de pessoas. Talvez o facto de não existirem tantas bandas e tanta oferta fez com que isto acontecesse, sinceramente não sei. No dias de hoje, o género está muito mais dividido, porque existem mais subgéneros que não existiam antigamente. Antes existiam bandas punk/hardcore e isso englobava as bandas de hardcore melódico ou as bandas de metalcore. Era apenas um género. Em termos de bandas, creio que hoje temos mais variedade e bandas que soam originais. Em termos de mensagem, acho que há espaço para todos. Nem todos têm de ser politicamente correctos, nem todas as bandas têm de ter uma mensagem forte. Há pessoas que simplesmente se sentem mais confortáveis a escrever os seus “demónios” pessoais. Creio que está diferente, mas não necessariamente melhor ou pior.

MDX – No dia 18 de Dezembro vão tocar no RCA, num concerto de beneficência. Fala-me um pouco mais sobre este evento.

Ricardo – A ideia deste concerto nasceu da vontade de fazer algo mais do que apenas um concerto. Tínhamos a data fechada para ser apenas mais um concerto, mas sentimos que poderíamos fazer algo mais. Então, porque não juntar as duas coisas? Pensamos na causa que poderíamos ajudar e, tendo em conta que maior parte das pessoas faz benefits para animais, sem-abrigo, etc, achámos por bem fazer algo para crianças e bebés. A Ajuda de Berço desenvolve um trabalho de auxílio e apoio aos mais desfavorecidos, com o seu foco nas crianças. É um assunto que, pessoalmente, me sensibiliza imenso, portanto fico feliz por podermos ajudar esta causa. As bandas que vão tocar têm sonoridades que vão desde o thrashcore, hardcore ou o thrash metal. Vai ser uma noite divertida, certamente.

MDX – A presença dos For the Glory neste tipo de eventos é habitual. Qual é a importância que, enquanto banda, atribuem a estas presenças constantes?

Ricardo – Infelizmente não podemos responder afirmativamente a todas as propostas que nos são feitas. Temos também de pensar que temos uma banda e precisamos de gerir bem o tempo e a forma como nos apresentamos. É claro que tentamos sempre associarmo-nos a este tipo de eventos, mas, a maior parte das vezes, até somos nós que os organizamos. Assim, estamos 100% dentro de tudo o que se está a passar e fazemos questão de ser nós a entregar os bens a quem apoiamos. Não sou muito fã de entregar dinheiro a algumas associações, prefiro sempre eventos em que estão envolvidos bens, por muito que me custe dizer isto. Muitas vezes não sabemos para quem vai todo o dinheiro angariado e como será aplicado. Se não formos nós a fazer, ninguém o fará por nós… é essa a importância de aliar a música a causas sociais.

MDX – Para além de músico, tens também outras actividades dentro do meio musical. Fala-nos um pouco sobre elas.

Ricardo – Desde muito novo que decidi que gostava que a minha vida fosse ligada à música. Não me considero músico, porque não sei um único acorde de música, apenas gosto de ouvir e o que me “bate” eu curto. No entanto, desde miúdo que este meio me cativou. Enquanto a maior parte dos putos queriam ir para as discos, eu ia ver concertos. Sempre fui assim. Organizar concertos, tours ou fazer merch para bandas tem-me ocupado ao longo dos anos, e esse trabalho fez com que fosse trabalhar para Torres Vedras, onde organizei durante dois anos e picos um ciclo de concertos mais indie/mainstream. Ciclo onde estiveram grandes nomes da música emergente portuguesa, como Dead Combo, Samuel Ùria, Noiserv, Márcia, entre outros. Para além disso, comecei também a trabalhar com Paus e Linda Martini, no Haus. É bom quando trabalhas com pessoas amigas que, apesar de terem crescido na música e terem muitos fãs, ainda preservam a sua essência. Mantêm a boa onda que os caracterizava em putos e que ainda conseguem ter em adultos. Tem sido uma experiência muito boa andar na estrada com os Linda Martini. Para quem não sabe, a banda vem do movimento punk/hardcore. É fixe trabalhar com este pessoal. No Haus, estou a dar uma ajuda enquanto agente, e temos bandas como Capitão Fausto, You Can’t Win Charlie Brown, Savanna, Riding Pânico, Chibazqui, entre outras. Acredito que a recompensa de se fazer o que se gosta traduz-se num trabalho melhor. E quando estás habituado a trabalhar com a ideia de DIY [Do It Yourself] acabas por ganhar uma estaleca maior para te safares profissionalmente. Sinto-me grato!

MDX – Foste pai recentemente. Certamente que isso mudou as tuas concepções sobre o mundo. Sentes que através da música estás a lutar por um futuro melhor para o teu filho?

Ricardo – Tem sido uma questão de adaptação. A única coisa que mudou em relação à música foi o facto de agora não sair tanto de casa para fazer datas na Europa. Tentamos que eu fique o menor tempo possível longe do meu filho e da minha mulher. Quero estar presente o mais possível, quero ter a possibilidade de acompanhar de perto a educação e a evolução do meu puto. Sinto que ao ser a pessoa que sou, que cresceu rodeada de boas pessoas, tenho a possibilidade de partilhar valores como honra, integridade, honestidade e igualdade. A música foi o meio para conhecer pessoas que significam muito para mim, que pensam de uma maneira positiva, com boa-fé, com amor. É isso que quero partilhar com o meu filho. É uma tarefa desafiante, mas sinto-me pronto para abraçar o desafio.

Os For The Glory vão actuar na próxima 6ªfeira dia 18 Dezembro no RCA Club em Lisboa, terão a companhia de Switchtense, Terror Empire e Sarna, numa noite de música de cariz solidário a reverter para a Ajuda de Berço, toda a informação sobre este evento pode ser consultada no evento facebook.

Texto – Pedro Reis
Fotografia – Luis Sousa