A promiscuidade é uma palavra injustamente maldita nos dias que correm, ora usada para descrever a corrupção sistémica do país ou para referir a receptividade sexual de alguém. Porém, nem sempre deve ser utilizada para descrever o que de mais podre há. Dizer que a cena underground de Lisboa e arredores é promíscua é querer apontar para o facto de haver uma série de músicos talentosos e predispostos a colaborar uns com os outros em múltiplos projectos. O casamento entre Rui Carvalho, Filho da Mãe em palco, e Ricardo Martins, é um desses felizes exemplos, junção de dois músicos com experiência para dar e vender em grupos como If Lucy Fell, Papaya ou Lobster. O duo tocou o recém-lançado álbum Tormenta na sua inteireza perante um Musicbox praticamente cheio, o que diz muito quanto ao gabarito dos músicos envolvidos e da curiosidade quanto ao seu novo projecto.
Seria fácil, mas igualmente redutor, descrever a música do duo como a sonoridade de Filho da Mãe sob o efeito de esteroides. Os dois músicos vão para além disso. A circularidade continua a ser palavra de ordem e Rui continua a formar paisagens com os seus fraseados em loop, mas aqui os sumptuosos dedilhados que Rui nos habituou em álbuns como Cabeça são raros. No seu lugar estão passagens mais económicas, mas de igual riqueza, que frequentemente desembocam em crescendos trepidantes à imagem do Pós-Rock.
Contudo, seria um desprimor centrarmo-nos nas guitarras sem dar igual importância ao trabalho na bateria. Ricardo Martins não é uma figura secundária apenas presente para marcar o ritmo, já que o seu trabalho na bateria tem tanto de inventivo como de energético, desencantando fills aparentemente impossíveis, que não estão lá apenas como um exercício de masturbação técnica mas sim como força motriz do dinamismo do conjunto. Logo a abrir com Putos Betos em Sítios Chungas, vimos os dois músicos a assumir os papeis acima mencionados – Filho da Mãe a alternar entre notas sorumbáticas e trovejantes descargas no pára-arranca que constitui o refrão e Ricardo a maltratar o seu kit com tamanha veemência que ainda íamos no inicio e já um bocado de baqueta tinha voado para a audiência, sujeito a tirar a vista a alguém.
Como já se sabia de antemão, o duo contou com uma panóplia de convidados para fazer a estreia em grande. Cruzes Credo deu uma mãozinha em A Tia Dela,
tocando a delicada melodia central enquanto Filho da Mãe despejava lampejos estridentes e Cláudia Guerreiro, conhecida parte integrante dos Linda Martini, emprestou a consistência do seu baixo a Estrela A Acabada.
No entanto, o momento que ficará na memória de todos os presentes, para o bem e para o mal, foi a participação de Norberto Lobo em Tartaruga. Ter dois guitarristas com estas características em palco pode ser incrível ou dar para o torto e o veredicto inclina-se mais para a segunda alínea. Não é que não tenham surgido momentos de magia, mas foram esparsos quando em comparação à disjunção caótica que caracterizou quase toda a música.
Quando sozinhos em palco, os dois músicos mostraram uma já esperada harmoniosa capacidade de entendimento. Tritão prosseguiu numa solene marcha, mais comedida mas não menos virtuosa, mas o outro momento alto da noite deu-se em Tormenta. O single de avanço ganha contornos incantatórios ao vivo, iniciando-se com uma sedutora melodia que cresce para sete minutos de curvas e contracurvas de inventividade que vai do cowbell endiabrado aos acordes emudecidos que mais parecem soar a um reco-reco.
Para o final ficou guardada uma das mais esperadas participações da noite. Óscar Silva, companheiro de Ricardo nos Papaya e conhecido como Jíboia na sua carreira a solo, ajudou a encerrar as festividades em Truta Salmonada, exercício de Math Rock que, em álbum soa algo inacabado, mas que aqui se estendeu intensamente de tal modo que Ricardo saiu quase a cambalear do palco depois de quase destruir a pobre bateria.
O público bem que pediu um encore, mas quando se dá tudo em palco é assim, não há corpo que aguente.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Luis Sousa