My Funny Velentine (Valentine), na penumbra, condição para qualquer alma atormentada como a de Tricky, já quase no final do concerto na Aula Magna. De Duke Ellington, a Sarah Vaughan, de Nina Simone a Frank Sinatra, de Nico a Elvis Costello todos passaram por esta melodia agridoce, sendo a de Chet Baker reconhecida unanimemente como a mais marcante. Serve a referência, não para exercício comparativo, mas para trazer à memória o trágico final do trompetista de Oklahoma – Hotel Prins Hendrik (Amesterdão), uma janela, uma vida no abismo, o salto para o vazio, a morte. Chet e Tricky com mais sombras que dias claros, a amargura como condição, as drogas, a música e as vielas da vida. Almas demasiado humanas, homens na sua contradição obrigados a exporem-se. A condição humana, no seu despojamento, enquanto espelho daquilo que somos, mas sobretudo daquilo que não queremos ser e escondemos. A condição humana é uma afronta. E afrontados assustamo-nos e repelimos. A música enquanto materialização do subconsciente, de matéria turva, recalcada e por, fim, os concertos como a exposição sem rede.
Overcome (Maxinquaye – 1995) prenúncio da tensão pré milénio declarada um ano depois, um objecto híbrido na sua concretização e intenção de manifesto, de convocatória, de contra corrente nas marés demasiadamente calmas do easy listening e chill-out então dominantes. Aqueles dois álbuns seminais, aqueles dois clarões que na tripla transição de calendário nos puseram em sobressalto para o que estes primeiros anos destaparam. Overcome no Coliseu pintado a negro denso, iluminado pela intermitência dos isqueiros, o dueto com Martina Topley Bird e o dia 18 de Maio de 1997 como data a figurar entre os concertos que se cognominam de memoráveis. Overcome na Aula Magna quase vinte anos depois, Martina Topley Bird não mais que um fantasma, um desbotado de um qualquer muro de descampado, desalmada, remetida para um cd e utilizada como voz de fundo. Um único tema e a metáfora para mais uma vítima deste novo milénio – Tricky. O escuro, a ausência de luz insistentemente pedida, o esbracejar sôfrego, a figura debruçada sobre o abdómen contorcido, o caminhar com os dois microfones como dois bastões a auxiliar a subida de uma montanha que se sabe intransponível. Não há ponto de fuga, por muito que se vire as costas, se esconda dos focos, se ausente do palco e deixe guitarrista em solo mais que sofrível, sente-se atrapado, é Jean Paul nos Campos Elísios momentos antes do tiro fatídico. O que antes era risco tornou-se caricatura, o manifesto frase debitada, uma intenção acção sem consequência. Revolta-nos porque temos o espelho como parceiro. Queremos a intensidade de outrora, o soco no estômago desferido sem comiseração. È agora? Não. Nunca surge. As imagens são do passado, a elas nos agarramos, as do presente confundem-se com as de Norma Desmond/Gloria Swanson desejando que o close up jamais se edite e que O Crepúsculo dos Deuses jamais se consubstancie.
Texto – João Castro
Fotografia – Ana Pereira