Backstage

Fast Eddie Nelson, a grandeza e a pureza do rock’n’roll

É sempre bom lidar com pessoas que, para além de serem excelentes músicos, têm um grau de humildade, genuinidade e transparência gigantes. Aproveitámos a ida do Fast Eddie Nelson ao sul do país para abrir o palco para um grande ilustre do blues (Lightnin Lee) e a sua vinda a Lisboa uma semana depois, para conhecermos mais um pouco da sua mestria e arte de fazer boa música.

Música em DX (MDX) – O que te liga à música?

Nelson – A minha infância liga-me à música. O meu pai era cantor e tenho irmãos mais velhos que sempre ouviram música enquanto eu era miúdo. Lá em casa era um bocado como algumas famílias com a televisão: “ah está a dar a telenovela, ah está a dar o futebol, ah está a dar os desenhos animados”, ali era assim com a aparelhagem, era quase preciso tirar senha para ouvir música na aparelhagem. O meu pai ouvia sempre muita música no carro e andava a cantar e a conduzir e eu desde miúdo que fiquei logo muito ligado à música como ouvinte.

MDX – Achas que a música consegue mudar consciências?

Nelson – Tenho a certeza disso. A arte consegue mudar consciências, é uma forma muito poderosa porque funciona quase como um mantra e a música em particular. Quando cantas alguma coisa a alguém é mais fácil que não se esqueça do que estás a dizer do que se estiveres a falar. Até as pessoas que discursam bem têm sempre um ritmo qualquer musical por trás do que estão a dizer. A arte tem obrigação de mudar consciências porque se não é só uma coisa para te entreter e isso não é obrigatoriamente uma coisa má. Mas sim, tem o poder de chegar às pessoas e dizer-lhes qualquer coisa.

MDX – De onde vem o teu gosto pelo blues, também é do teu pai?

Nelson – Não. O meu pai gostava muito de The Shadows e o meu gosto pelas guitarras se calhar vem dai e eu nem sequer sabia. Achava aquela música muito interessante porque não tinha ninguém a cantar, havia um som que fazia a parte da voz mas eu não percebia o que era aquilo e depois é que comecei a perceber que havia guitarras eléctricas e que faziam sons. Quando cheguei à adolescência é que comecei a ouvir muito música dos anos 60 e 70 e ouvia bastante Jimi Hendrix, Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath e comecei a perceber mais tarde de onde é que aquilo vinha tudo. Principalmente o Hendrix e os Zeppelin são músicos com um pedrigree de blues absolutamente brutal e comecei a perceber que afinal esta musica não era do Hendrix mas sim do Muddy Waters, esta música não era dos Zeppelin, era do Willie Dixon. Quando deixa de haver coisas novas daquele grupo começas a procurar as influências. Os Stones então… nos primeiros álbuns era só versões de blues, tocadas à maneira deles mas ainda bem porque assim nasceram os The Rolling Stones. Basicamente foi começar à procura das raízes das coisas e essa viagem começou por ai. Depois aconteceu uma coisa muito importante na vida de muita gente que foi o aparecimento da internet e então já não era preciso ir atrás das pessoas que tinham álbuns, já podias pesquisar e era muito mais fácil. Os concertos também ajudaram e fui conhecendo mais artistas. O bichinho foi-se apoderando de mim através do rock’n’roll.

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MDX – Qual é o teu artista de blues preferido?

Nelson – É impossível dizer isso! Eu gosto muito do Charley Patton, é um dos meus cantores preferidos, a forma dele cantar influencio muita gente, inclusive no rock’n’roll. Mas é muito difícil porque há pormenores deste que gosto mais do que de outros. O Robert Johnson era um guitarrista exímio que inventou uma serie de coisas (pensamos que inventou, também se roubava muita coisa uns aos outros). Gosto muito do Mississipi Blues, é a génese do blues e gosto imenso! Gosto muito também daquela onda toda de Chicago com o Muddy Waters, o Howlin’ Wolf e Son House. O Texas também teve impacto no blues muito interessante. É muito difícil, também depende do meu estado de espirito e há dias em que não tenho sequer pachorra para ouvir blues, como deves imaginar. Mas estes que disse são estruturas basilares e depois em cima disto há outros.

MDX – Porque é que tocas descalço?

Nelson – Hoje não vou tocar descalço, quando está muito frio não toco descalço e quando está calor às vezes também não devia. Já enfiei mil pregos, pioneses e arames nos pés, já apanhei muitos choques, já queimei os pés em palcos a ferver e tudo, mas não há comparação. Quando tocas em palcos de madeira tu sentes as vibrações, não há nada melhor na audição de que os ossinhos da cabeça a vibrar e tu ouves com os pés. Em palcos de madeira e salas com boa acústica tu consegues sentir muito. Para além do mais estou muito mais confortável e acho que o músico quando toca tem de estar confortável. Tenho muita pena daquelas bandas que tocam todos engravatados. Uma pessoa tem de estar confortável, sentir a energia e deixar as coisas fluir. Isto agora foi um bocado freak mas é isso que eu sinto, a energia entra pelos pés.

MDX – És tu que fazes as tuas guitarras?

Nelson – Não. Eu às vezes faço umas coisas mas não. Tenho uma muito bem feita que me foi oferecida, é da Lucky Stripes que é um rapaz do Porto que faz e me foi oferecida pelo Nuno Calado. Fiz umas experiências mas não fiz muito bem, o Cafageste que toca baixo comigo é que já tem feito umas coisas muito interessantes com caixas de garrafas de whisky e cabos de madeira. Ele faz isso muito melhor que eu, tem mais paciência e é mais prendado.

MDX – Como foi abrir o palco para o Guitar Lightnin Lee?

Nelson – Para mim foi óptimo. Nós ouvimos falar das histórias e ele viveu-as. O Guitar Lee é um individuo que conviveu e tocou com muitos nomes grandes que conhecemos internacionalmente só que nunca teve a hipótese de quebrar aquela pequena barreira para o estrelato. Seja como for, ele não se comporta como uma estrela embora seja uma e tem 73 anos e toca todos os dias. Faz digressões na Europa e senti um bocado aquele peso da responsabilidade porque ele aprendeu a tocar guitarra com o Jimmy Reed, andou a tocar com a Koko Taylor e com essa malta toda, tem montes de historias para contar e é um gajo muito engraçado. Não só o ajudei a marcar as datas em Portugal, como ter tocado com ele foi bestial.

MDX – E como é que correu?

Nelson – Correu muito bem e foram duas noites em que havia muita gente a dançar e essa ideia do blues ser uma coisa depressiva tem de morrer, já morreu um pouco, felizmente, mas o blues é uma música popular e é para dançar. Ele tocou 2h para gente sempre a dançar e isso foi muito bom, nas duas noites teve sempre gente a dançar em frente ao palco. Foi bestial, ele é que sabe da poda, ele pega na guitarra e tem sempre ritmo, até a falar tem ritmo.

MDX – E o que é que vai acontecer hoje?

Nelson – Hoje está nas mãos de Sam Alone & The Gravediggers que são uma banda excepcional, acho que algumas das melhores canções que se escrevem neste país vêm desta rapaziada e depois, para além disso, somos muito amigos e eles têm aquela ideia muito de família, o Poli é o papá. Para mim é um privilégio, somos todos amigos há imenso tempo e vir aqui abrir para eles é a cherry on top.

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MDX – Qual é o teu sonho enquanto músico?

Nelson – Não sou muito ambicioso nesse aspecto, mas gostava de poder continuar a fazer os meus discos da maneira que os faço, e eu é que mando! Nesse aspecto, a nível de composição e produção acho que todos os artistas têm de ser assim, faço as coisas à minha maneira e depois convido músicos para tocar comigo mas poder continuar a fazer pelo menos 1 disco por ano nas minhas condições já era muito bom. Se puder ganhar algum dinheiro com isto e pagar a renda… tenho viajado bastante e isso é bom, continuo um pé rapado mas já toquei em vários sítios e conheci outros músicos e vários países isso tem sido do mais gratificante possível.

MDX – Se tivesses de mudar alguma coisa no mundo, o que é que mudavas?

Nelson – Mudava quase tudo. Mudava as pessoas! Pegava numa grua, tirava as cabeças e punha umas cabeças mais giras, menos complexadas, mais de bem com a vida e a aproveita-la mais sem estragar a vida dos outros, basicamente era isso. De resto o mundo é um sítio brutal, as pessoas é que dão cabo disto tudo. Que as pessoas começassem a olhar menos para a televisão e mais para o mundo, as pessoas querem ver o mundo na televisão mas é melhor abrirem uma janela e olharem para o mundo e para as pessoas e ser mais críticas e autocríticas. Nesta vida da música eu pergunto-me todos os dias o que é que ando aqui a fazer e depois chego sempre a boas conclusões e continuo a fazer,  a ideia é essa. Questionem-se a si próprios e aos outros e curtam a vida porque eu só acredito nesta, há quem acredite em mais e mesmo que haja mais esta não deixa de ser preciosa por causa disso.

MDX – Que mensagem gostavas de deixar aos nossos leitores?

Nelson – Vão atrás dos vossos sonhos e divirtam-se muito no processo. Tenham um plano, isso é muito importante. Se não tiverem um plano façam um: “vou ser muito feliz com o que?” e depois tentem fazer o possível para lá chegar. Não é preciso acumularem montes de dinheiro, basta apenas fazerem um plano para serem felizes, não se deixem só andar porque depois um dia olham para trás e arrependem-se de não ter feito as coisas porreiras que podiam ter feito.

Só temos a agradecer as palavras de Nelson e ansiar que continue a fazer a boa música que faz, coberta de alma e sabedoria.

Texto – Eliana Berto
Fotografia – Valentina Ernö (Silvana Delgado)