Penso sempre no Eduardo como o Samurai de Melville. Não sei se pela gabardine, se pelo chapéu, o do Eduardo de coco, mas muito certamente pelo lado mais solitário do trabalho que tem vindo a desenvolver enquanto documentarista de música. Aquando da estreia de Tecla Tónica, o seu mais recente documentário, fiquei com um híper criticismo alarmante. Vi uma progressão gigantesca face a trabalhos anteriores, mas com uma série de dúvidas sobre algumas opções que na minha análise eram mais que questionáveis. Não se trata de uma conversa entre amigos, essas não têm de ser necessariamente publicáveis, não se trata de uma oportunidade para se defender, o trabalho dele aí está, simplesmente uma troca de pontos de vista, não para caucionar as minhas ideias, mas para uma maior compreensão sobre o objeto, meritório aliás, que agora se apresenta por várias cidades do país.
Música em DX (MDX) – Há uma lógica itinerante na apresentação dos teus documentários que se repete neste Tecla Tónica, porquê?
Eduardo Morais – Desde o primeiro trabalho o Meio Metro de Pedra que pensas – porque não repetir? Em Aveiro, em Braga, em Vila Real correram sempre tão bem, tão bem recebidos que naturalmente pensas que é para repetir. Imagina, que com o terceiro o Uivo, já vemos o mesmo grupo de pessoas que vai acompanhando o teu trabalho. Desde os rockeiros de Viseu a tanto outros. É difícil esqueceres isso.
MDX – O Uivo teve uma apresentação quase cerimonial no Palácio Foz, agora no IndieLisboa…
Eduardo Morais – O Tecla Tónica foi patrocinado pela Jameson e uma das premissas seria que a marca ficaria encarregue da estreia. E foi no Indie.
MDX – Após a estreia do Tecla Tónica houve um concerto com os Ghost Hunt. Noutras cidades irá suceder o mesmo, porquê?
Eduardo Morais – No Uivo já tinha feito isso com algumas bandas, como por exemplo os Cave Story, com os Dirty Coal Train com os Act-ups, provavelmente está a escapar-me alguma, e agora com o Tecla Tónica 80% das exibições serão com os Ghost Hunt. São muito estes gimmicks. No Meio Metro ia com uma mala cheia de discos que eram focados no documentário. O gajo fazia aquelas conferências muito informais e tinhas o encontro muito próximo com as pessoas. A partir do Uivo comecei a fazer isso também com as bandas. O António Sérgio era o divulgador das bandas emergentes, então porque não também levar bandas novas? No Tecla Tónica são os Ghost Hunt porque representam uma certa forma de eletrónica de agora.
MDX – Centrando-nos no objeto, digamos assim, como é que passas de uma área maioritariamente rock, que aliás associamos mais ao teu percurso como Dj, para a área electrónica?
Eduardo Morais – Nos últimos anos, tenho ficado muito vidrado naquela electrónica dos anos 60/70 e há compositores desses cá. Acontece que não havia nada documentado sobre eles. Não há informação, não se sabia literalmente nada, então se quero saber mais ponho-me à procura. Todos os documentários partem do mesmo princípio que é curiosidade, tentar saber mais. O arquivo é tão maltratado. Nos últimos anos tenho visto muito isso, que é o pessoal da minha idade tratar da história do hard-core, do punk, do hip-hop e é uma certa reacção da minha parte em não haver nada. É também um acto egoísta de insatisfação, de querer saber mais, de aprender mais.
MDX – A curiosidade pode ser um estímulo interessante, mas daí até partir para uma pesquisa mais intensiva vai um passo largo. Contaste com algum tipo de apoio?
Eduardo Morais – Houve ao longo de todo o processo pessoal que me foi ajudando, por exemplo o Afonso Cortez que é um gajo que recolhe tudo. Infelizmente ao longo do trabalho para o Tecla Tónica não tive acesso aos arquivos da Hemeroteca que na altura estava fechada. Há muitas horas na net, falar com muita gente. Mesmo durante a filmagem vais absorvendo o que as pessoas te vão dando, é um bocado por aí.
MDX – Nota-se sempre uma abordagem cronológica nos teus documentários…
Eduardo Morais – Sinceramente porque não sei fazer de outra maneira (risos).
MDX – A tua maior dificuldade foi saber quando parar?
Eduardo Morais – Tanto neste como no Meio Metro é o actual. Às vezes acaba por ser um erro, vamos fazer este espectro até agora, só que um gajo chega ao agora e quando se depara em ter que definir qual o último a aparecer, parece que estamos a dar a ideia que serão os derradeiros. Qual escolher nem sempre é fácil, mas são opções.
MDX – Há momentos no documentário que remetem para estilo e/ou épocas que depois não são explorados, por exemplo a referência à música electrónica e a sua relação com o teatro, a danças e as artes performativas, mas se bem me lembro não entrevistaste nenhum coreógrafo. Fico com a impressão que por vezes abordas o tema, mas não exploras nas suas mais profundas implicações.
Eduardo Morais – Tentei entrevistar o Nuno Rebelo. Ele mora em Barcelona, tentámos lá ir. Mas muitas coisas têm de ficar de fora. O orçamento é limitado, o tempo é limitado.
MDX – Há também um momento em que entrevistas o Vibe. O universo da música de dança é todo um outro mundo. Porque tiveste a necessidade de também o incluir?
Eduardo Morais – Há o pioneirismo da música industrial e os primeiros movimentos da música de dança e como o Rui Estêvão da Antena 3 diz foi a primeira vitória do underground em Portugal. O house e o techno eram as raves, eram coisas completamente clandestinas, só que aquilo rebentou e o Vibe rebentou numa escala global.
MDX – Insisto dada a quantidade de informação, não pensaste e disseste – se calhar o melhor é não meter isto e faço só um documentário sobre música de dança.
Eduardo Morais – (risos) A música de dança está bem presente no Tecla Tónica, desde o Carlos Maria Trindade, ao Ride, ao Moullinex, ao AlexFx, também um dos percursores do drum&bass em Portugal. Também gostaria de ter colocado alguém do trance, mas não dá.
MDX – Muita da descoberta musical em determinados meios e numa época pré internet fazia-se através dos catálogos de distribuidoras/lojas como a Contraverso e a AnAnAnA. Não houve vontade de entrevistar essa malta?
Eduardo Morais – Eu tentei falar com a malta da AnAnAnA, com o Fred Somsen e ele na altura não estava cá. Mas lá está a AnAnAnA foi uma referência para mim enquanto pesquisava sobre o tema, mas também, como nos outros casos não deu.
MDX – Na transição do milénio havia muito a tendência de se descobrir a música através dos festivais. Talvez nem seja o exemplo mais feliz mas lembro-me do Festival Número. Não houve a necessidade de entrevistar um dos programadores?
Eduardo Morais – Pode ser ignorância completa, mas não sei até que ponto foram assim tão pioneiros. Lá está, nos documentários que faço tento sempre escolher quem quebrou as barreiras, por exemplo no Meio Metro de Pedra não senti a necessidade de incluir o Rui Veloso. É o pai do rock, pai do rock mas em termos de quebrar barreiras não fez absolutamente nada. Na música eletrónica acaba por ser um bocado isso, quem foram os pioneiros disto, quem é que quebrou as barreiras aqui, quem propôs, no sentido de quem é que deu a volta, o curvar dos vários tentáculos da eletrónica.
Mas mesmo assim entrevistei o Luís Fernandes, responsável pela programação musical do GNRation. Sem querer fazer spoiler, os últimos cinco entrevistados finais representam no meu entender as cinco mais importantes ramificações da electrónica e os cinco que mais reconhecimento tem cá como além-fronteiras – o Luís Fernandes, com a organização do Semibreve, o Ride e a questão do sampling e a cena hip-hop que aqui não deu para explorar, o Moullinex e a vertente de Dj e disco, o André Gonçalves, que era o gajo que não tinha dinheiro para comprar os sintetizadores e começou a construi-los e veja-se o que é ADDAC e o Batida com a sua vertente de música mais africana.
MDX – Virando a página das possíveis faltas ou não, quais as influências que os diferentes movimentos mencionados continuam a ter na música que se faz hoje?
Eduardo Morais – Penso que há um momento marcante que é a transição da música industrial para a música techno. Aquela cadência, a ausência da bateria, o 4 por 4. Em relação aos Telectu, que até tiveram alguma projeção mediática via o sketch do Herman, penso que hoje em dia o impacto da sua música é residual. Também depende do que entendemos por influência, se falarmos de abordagem, da síntese enquanto pensamento aí talvez seja diferente. Certamente há influência no David Maranha e no Rafael Toral do trabalho do Zíngaro, por exemplo.
MDX – E a influência do Tecla Tónica no teu trabalho? Há a possibilidade de um segundo documentário?
Eduardo Morais – Um segundo documentário sobre este tema definitivamente não. Nem mesmo o universo dos Dj’s por exemplo. Nesse universo penso que muita coisa já foi criada, por isso é um pouco dar espaço. Há agora o documentário Porto eletrónica, por exemplo – para quê repetir? A minha ideia é um pouco unir estes pedaços amadores de arquivo, para o pessoal absorver ao máximo e ir estudar para casa. (risos)
MDX – Quais as principais críticas que recebeste até agora?
Eduardo Morais – É claro que já apanhei gajos a criticarem-me por não aparecerem em detrimento do José Cid, mas são opções que tomei. Gostaria de ter abordado a questão dos novos média, mas não é motivo que me leve a fazer um segundo. As pessoas não podem ver estes objetos como uma verdade absoluta, isto é uma visão pessoal, assumo a parcialidade do mesmo, e isto é um contributo para uma história. O Tecla Tónica é a alquimia da eletrónica, é a eletrónica na música, ou seja, onde é que os diferentes músicos incorporavam a eletrónica e quem é que a começou a fazer.
Por exemplo, na estreia disseram-me que a primeira metade é muito específica e que chegavam à segunda, aos anos 80, e que há bastante informação. Mas mesmo nos anos 80 há essa vertente cultural, quando o Armando Teixeira refere que o pessoal aparecia cheio de maquinaria e ficava tudo espantado, mas mesmo ele diz que a música que se produzia naquela altura era maioritariamente composta por máquinas.
+info em www.facebook.com/teclatonica
Entrevista – João Castro
Fotografia – Daniel Jesus