O som do mar sintetizado encheu a sala do Coliseu dos Recreios, muito antes de ficar somente “meia-sala”. As luzes do Coliseu permaneceram acesas, mesmo depois de Naomi Campbell aparecer no grande ecrã.
Imagem a preto e branco, brilho do negro dos seus olhos e do contorno do seu corpo magro (muito) e esguio. Triste, desconectada com o ritmo, numa tentativa permanente de equilíbrio na dimensão do tempo e do espaço. Trinta minutos durou a metamorfose de Antony (através do corpo de Naomi) para Anohni. Trinta minutos na mesma melodia monocórdica a levar-nos ao limite do nosso entendimento. O suficiente para desligarmos da imagem tendencialmente masculina de Antony e entrarmos no mundo feminino de Anohni.
Com um manto branco e de cara tapada, não a vimos nem a imaginámos. Acompanhada com dois músicos (Chris Elms e Dan Lopatin) nos sintetizadores, que produziam a harmonia dos arranjos eletrónicos. Absortos nas estórias de Hopelessness, ali ficámos imóveis com os batimentos cardíacos em sintonia com os rostos fortes de todas aquelas mulheres. Brancas e negras, magras e gordas, bonitas e feias, novas e velhas. Mais de uma hora na intensidade das emoções de todas elas, que encarnaram a verdade de todas as contestações e constatações do sofrimento da nossa Era.
Um “sonho americano”, que mesmo com a esperança personificada em “Obama”, não consegue minimizar as profundas fragilidades de uma sociedade. O distanciamento crescente entre “nós” e a nossa “mãe terra”, e que ninguém consegue entender, “Why did you separate me from the earth?” A dor projectada na raiva de um rosto, que continua com perguntas a um Jesus adormecido que “queima a esperança” dos Homens, “Jesus kill you”.
As mulheres prosseguem no Hopelessness, em descargas emocionais continuas. Saímos de um tema e entramos noutro com a mesma intensidade. Queremos mais raiva, queremos mais ódio, queremos mais tristeza. Queremos mais cumplicidade, por sabermos exactamente que Anohni escreveu tudo aquilo em nome de todos nós. E eis que surge na tela branca o rosto de Antony e Anonhi deita-se no chão a cantar. Antony não canta, não sorri, não chora, não reage. Apenas aquele olhar meio perdido no contorno das sobrancelhas femininas, no aro azul-acinzentado dos seus pequenos olhos. O público reage de imediato, homenageando-o numa ovação prolongada (“In My Dreams”).
Quase no final, “Drone bomb me” o single de lançamento do álbum. Naomi regressa à tela com o brilho reforçado nos olhos, provocado pelas lágrimas grossas que lhe caem incessantemente no rosto. Porque afinal todos somos cúmplices das atrocidades do mundo, “After all, I’m partly to blame”. O espetáculo termina com um discurso de Ngalangka Nola Taylor, que inicialmente discursa em dialecto aborígene e depois em inglês. “O mundo está de pernas para o ar (…) mas apesar de tudo ainda vamos a tempo de fazer dele um bom sitio para viver”. Hopelessness é o descarno de tudo o que de negativo temos feito ao longo dos anos, à nossa espécie e ao planeta que nos dá a Vida. Mas é também a réstia de esperança que nos permite remediar os danos e acreditar no poder do feminino, na salvação da Terra e da Humanidade!
Texto – Carla Sancho
Fotografia – Luis Sousa
Promotor – Sons Em Trânsito