Quase quatro semanas, nem é tempo recomendável para comer iogurtes fora de prazo, nem para escrever crónica de concerto. Já lá vai em que chegado de Barcelona, com certo atraso, Kid Congo and the Pink Monkey Birds sobe ao palco do Sabotage e embora não sendo a primeira vez que nos visita começa a destilar a sabedoria rock n’rolliana. Não é nada de novo, ninguém está à espera que o seja, mas como se costuma dizer – engancha. Dois, três acordes de guitarra vivaz, bateria a dar o mote e um chefe de pelotão a marcar ritmo seja pela energia imprimida seja pelas palavras dirigidas.
Voltemos no tempo, a este intervalo de quase um mês, heresia em época de redes sociais, e tentemos compreender a razão pela qual ainda subsistem as marcas deste concerto. Paremos ponteiros menores e maiores e fiquemos pelo terceiro tema aquando da referência à heroína e ao desejo que ela chegue depressa, bem depressa, sem segundos por intervalo porque este é o meu corpo ou o corpo que se torna nosso. O meu e o do desejo. O assombro como resposta primeira, a aceitação como a definitiva. Tira o casaco, despe as calças com dose de erotismo e leveza a transbordar sensualidade por todos os poros. Agarro na saia dela, ata-o à minha cintura e começamos uma dança que bem podia ter como chão as flores dos jacarandás. As pernas dela, o tronco dela, a cabeça de um e do outro. Aquele corpo agora é nosso, o dela também – um. Mas Ela não é uma mulher qualquer. O desejo de transformação não é somente sexual mas a passagem para um limbo entre a realidade e o ficcionado. O corpo como a derradeira fronteira, certamente, mas a intemporalidade de um tempo para além do nosso, mesmo que pós apocalíptico. Assim foi naquele instante. Naqueles três minutos, em frente a um palco, de uma casa, porque é pouco maior que a nossa, e que permite esta proximidade, esta distância longa, sem intermediação de plasmas de último modelo e de ecrãs de milhares de polegadas. Eles, nós, e a distância curta entre o infinito. São assim os concertos no Sabotage, este mais do que muitos, pela omnipresença de Kid Congo, odor que se impregna de álcool e fumo, das entranhas de uma época. A imperfeição assumida, o erro como pauta, desigual em muitos momentos. As trips nem sempre voltam e acabam por emperrar em qualquer agulha ferrugenta. Com momentos nem sempre entusiasmantes, mas um convite a sair – das propostas formatadas, dos arranjos pré-determinados, das bandas a soar a separador de programa informativo ou anúncio de telemóvel.
O desejo é necessidade, volúpia afirmação. Estas noites de início de Verão, na esperança que comece um novo tempo. Não chegará, mas que pelo menos o futuro não seja aquele que nos querem impor.
Texto – João Castro
Fotografia – Ana Pereira