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Super Bock Super Rock dia 16, Um fenómeno chamado Kendrick Lamar

E à terceira tentativa, o recinto encheu. Afastado da matriz Rock que popularizou o festival, o último dia do Super Bock Super Rock teve o Hip-Hop como espinhal dorsal, a solo, em grupo ou até mesmo em banda. A aposta foi recompensada pela enchente que se verificou, para conhecer novos talentos como Slow J e Mike El Nite, poder testemunhar a actuação de velhas glórias como De La Soul, mas, acima de tudo, para assistir a um dos mais excitantes e criativos rappers que Los Angeles trouxe ao Mundo, Kendrick Lamar.

À chegada do Parque das Nações, o cenário instalado dava logo a entender que este seria um dia muito diferente dos outros, com longas filas montadas desde cedo para entrar no recinto. O Palco Antena 3, a primeira paragem do costume, contava com o triplo das pessoas dos dias anteriores, não obstante a falta de sombra e o calor ainda mais intenso. Foi aqui que vimos duas refrescantes propostas de uma cena underground nacional pulsante, primeiro com Slow J, depois por Mike El Nite.

O jovem rapper de Setúbal não coube em si a felicidade de abrir o palco de um grande festival, e mais importante que isso, fazê-lo no mesmo dia que Kendrick Lamar, mostrando os temas de Free Food Tape com essa sensação de missão cumprida. A sua ascensão repentina não é obra do acaso. O seu trabalho, por si escrito e produzido, mostra uma visão singular, patente em temas como O Cliente, com todo o seu fervor anti-establishment educacional, ou Cristalina, canção despida de rap e apenas acompanhada de piano e da voz soulful de Slow J. Foi o que se assistiu no palco Antena 3, talento a desabrochar, fielmente acompanhado pelos muitos que sabiam as letras de cor. Às tantas Slow J indaga-se em Pai Eu: “Não isto não pode ser poesia/Não foi escrito nem revisto numa academia/Digo, antes de julgares dá um passo atrás/E pergunto só o que é que Bocage diria”. Cremos que ficaria orgulhoso em ver um filho da sua terra a vingar.

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A farra continuou com Mike El Nite que, apetrechado com uma camisola da Selecção Nacional, servindo-se do clima de euforia criado pela nossa histórica vitória para uma saudável sessão de bazófia. Lançado neste que é o ano de “2000 e Éder”, O Justiceiro foi a base para uma actuação onde rapper tanto foi ao braggadocio puro como à denúncia social, utilizando para ambos o seu estilo muito próprio que complementa a técnica à capacidade de proferir versos tão hilariantes quanto memoráveis, com referências à cultura popular, punchlines e demais anglicanismos. E não o fez sozinho, para completar o ramalhete teve uma panóplia de convidados, desde L-Ali, que emprestou o seu carácter sinistro a Drones, até Prof Jam e a sua entrega furiosamente rápida. Foi também este último o responsável por trazer uma bola de futebol para o palco, defendida por este escriba aquando ao remate de Mike El Nite para o público. A festa estava rija, mas tivemos de abandonar a meio de Badalhocas, cantada com a sua irmã de armas Da Chick, rumo ao palco EDP.

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Debaixo da pala de Siza Vieira podemos testemunhar a monumental empresa dos Fidlar, empenhados em provocar o maior mosh do festival. A toada não mudou muito em relação ao que o rapper português estava a fazer do outro lado do recinto, já que o punk propositadamente ordinário e pueril dos californianos também tem como missão instigar rebelião debochada, mas soube bem mudar de ares musicais. Orgulhosamente deslavados e na rota inevitável das clínicas de reabilitações dentro de dez anos (ou menos), os Fidlar cantaram odes ao excesso, ao amor juvenil e ao turbilhão de sentimentos que é ser um teenager ou, pior ainda, um jovem adulto que ainda não sabe que já o é.

Seguiu-se o primeiro de três concertos seguidos no Meo Arena, com os Orelha Negra a terem as honras de estreia neste dia. Sabendo que estávamos perante um evento especial com a presença de figuras de peso do Hip-Hop em Portugal, os Orelha Negra até começaram com uma divertida medley que passou por clássicos como Simon Says, Kick in the Door e Gravel Pit até êxitos mais recentes como Otis, 0 to 100 ou a ubíqua Hotline Bling. Contudo, talvez pelo som estar invulgarmente baixo ou por pairar a sensação de que este era apenas um exercício de preparação para as actuações seguintes, os Orelha Negra deram um bom concerto mas longe do brilho de outras ocasiões. Ainda assim, é sempre bom revisitar velhos amigos como Miriam e Round 4 Round, assim como escutar as novas Sombra e Parte de Mim.

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Já os De La Soul, apesar de terem estado afastados da ribalta durante largos anos e de serem representantes de um tipo de Hip-Hop muito diferente daquele que se popularizou actualmente, não foram meros participantes numa demonstração didática do passado, servindo-se do seu carisma magnetizante e de um repertório de peso para mostrar que na música não há gap geracional. Pos, Dave, Maseo são verdadeiramente old-school, filhos do movimento Native Tongues e fieis adeptos do boom-bap, vindo ao Meo Arena mostrar como é que se curtia na Long Island dos anos 90, a bem ou a mal. Daí que logo no início, o grupo se tenha recusado a continuar enquanto os fotógrafos não baixassem as câmaras e dançassem por alguns minutos ao som de Grind Date. Pensava-se que estivessem a brincar, mas não, os De La Soul são mesmo assim.

Com a confiança e o à vontade que apenas muitos anos de experiência podem trazer, o grupo passou quase tanto tempo a cantar temas inevitáveis da sua longa história como a interagir com o público. A músicas como Potholes in my Lawn, Ooooh ou Stakes is High, seguiram-se momentos em que Pos e Dave, cada um de um lado do palco, se entretiveram a incitar as suas respectivas fatias do público a cantar, gritar e competir com o lado oposto, tarefas que a audiência prontamente completou. Sendo bastante provável que a maior parte dos presentes não conhecesse grande coisa dos De La Soul, talvez à excepção de Me, Myself and I, foram em todo caso conquistados rotundamente pelo grupo de Nova Iorque, que até fechou o seu tempo de antena com uma canção conhecida de todos nós – Feel Good Inc., original dos Gorillaz onde participam e que causou uma explosão de alegria no pavilhão.

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Chegou finalmente o momento mais aguardado de todo o Super Bock, para muitos certamente o deste ano. Sem desprimor para os outros artistas do festival, o único dia a esgotar foi o terceiro e por uma razão apenas: Kendrick Lamar. De Compton para Lisboa, o rapper norte-americano voltou a Portugal três anos depois de visitar o Porto, tendo nesse período de interregno sido catapultado até ao topo do Hip-Hop mundial. Suportado por uma esparsa banda (faltava a secção de sopro), o rapper passou em revista os seus dois últimos álbuns (de Section.80 nada se ouviu a não ser uma tímida introdução a A.D.H.D) num espectáculo dinâmico, com várias músicas a desembocar noutras sem perder o fio condutor e em permanente comunhão com um público de cabeça perdida para o ver.

Kendrick, como outros lendários artistas negros seus precursores, desde Parliament a Gil-Scott Heron, é uma ponte entre mundos. Juntando a faceta política, social e, acima de tudo, racialmente consciente à função de catarse e diversão face à adversidade que o Rap sempre teve desde a sua génese, Kendrick Lamar é capaz de tornar a dor e a angústia, mesmo que alheias à sua audiência, em celebração. Foi-o assim nesta noite, desde o ímpeto maníaco de Untitled 7 até ao hino de esperança perante o abismo que é Alright, passando pelo groove contagioso de Money Trees, a agressividade desesperada de m.A.A.d city, a confiança desbragada de King Kunta, o virtuosismo no spoken-word de For Free? e tantos outros momentos custa listagem seria apenas uma maquinal descrição de um concerto tão vívido.

Não deixa de ser curioso que tenha sido To Pimp a Butterfly, um álbum denso, exigente, com rimas tão intrincadas quanto os temas que aborda e logo à partida menos acessível para o grande público, a elevar Kendrick para este patamar de popularidade. Mas o que vimos no Meo Arena foi prova disso mesmo, um clima de adulação tão intenso a ponto de, lá para o final do concerto, Kendrick ter ficado calado a ouvir os cânticos em seu nome com genuíno apreço. Recompensa merecidíssima para quem foi capaz de meter um pavilhão inteiro em ponto de rebuçado, a saltar, dançar, cantar e até mesmo chorar com a sua música. Se as paredes do Meo Arena falassem, diriam que fora feita história naquele local.

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Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Nuno Cruz
Evento – Super Bock Super Rock 2016
Promotor – Música no Coração