Depois de uma alucinante semana de concertos no MusicBox, com destaque para Wild Beasts e 65daysofstatic, o término do Jameson Urban Routes 2016 entrava na reta final, com os últimos concertos deste festival outonal agendados para o caloroso fim-de-semana passado. Sendo a exceção à regra, o último sábado arrancou os concertos a uma hora bem mais madrugadora do que o habitual, perto das quatro da tarde. O excelente temporal que tem abalado o nosso país, com temperaturas que relembram os primeiros dias de julho, afastou a usual clientela que se reunia constantemente na sala de concertos do Cais do Sodré, o que levou a que a décima segunda sessão do evento fosse a que tivesse menor afluência. Contudo, os que marcaram presença, certamente que não saíram arrependidos, graças ao esforço comum entre Primeira Dama e Lonnie Holley.
O primeiro dá pelo nome de Manuel Lourenço, um rapaz lisboeta cujas vivências com a música – estudou esta arte durante dez anos – permitem-lhe ter uma relação quase simbiótica com teclados. Durante esse tempo, aprendeu a manipular a sua voz como bem lhe apetecesse, talento este mais do que evidente sempre que suspira, enquanto os seus dedos dançam pelas notas de um piano; só com estes dois elementos em palco, dificuldade não houve em preenchê-lo. Através da sua bedroom pop, género musical apelidado pelo próprio, conquistou uma pequena mas fiel plateia, rendida à simplicidade das suas composições, proporcionando momentos intimistas que não seriam possíveis caso a sala estivesse mais composta. Contando histórias sobre como cada música surgiu – ocasiões irónicas, dado que o seu disco de estreia dá pelo nome de Histórias Por Contas – ou até levando amigos a palco para o auxiliarem numa canção, Primeira Dama mostrou que é detentor de um potencial e de um talento incrível, calando as más línguas que o classificam como um ‘copy paste’ de B Fachada.
Continuando a linha de intimidade iniciada por Manuel, seguiu-se Lonnie Holley, atraindo mais umas quantas dúzias de pessoas à sala do MusicBox. Um concerto deste senhor é sempre uma enorme incógnita, com o fator surpresa a reinar desde o início ao fim; nunca apresenta o mesmo tema ao vivo duas vezes, o seu registo muda drasticamente de noite para dia e é bem capaz de criar umas três a quatro músicas por atuação. Contudo, a única constante é a de um homem apoiado por um piano – a sua versão de bengala? – e com toda uma vida para c(a)ntar, assim como a capacidade de meter os seus seguidores a refletir sobre todos os passos que a sua vida levou até àquele momento. De forma a entender quem era aquele homem que adotava umas vestes tudo menos normais para o mundano lisboeta, o seu manager subiu a palco para apresentá-lo como:
“um senhor de família do Alabama, que se decidiu atirar de cabeça para o imaginário das artes quando viu uma das sobrinhas falecer e, a partir desse instante, quis começar a criar algo que perdurasse mesmo depois da morte”.
Com um estilo muito único, uma espécie de fusão entre o spoken word de Benjamin Clementine e o soul de Ray Charles, Lonnie Holley entrega-se de tal forma às suas canções que ninguém lhe daria os seus sessenta e seis anos de experiências de vida, tal é a sua vitalidade. Todavia, é nos momentos que se dirige ao público que a sua experiência de vida fala mais alto, adotando o perfil de um velho sábio que muito tem a pregar e gente para o escutar, ou não estivesse perante uma das plateias mais respeitadoras e atenciosas de que há memória, que trocou as pernas pelo conforto do solo da sala; uma a uma, as pessoas iam se sentando de forma a escutar com atenção os episódios de alguém a quem o formato do palco do MusicBox relembrava a parte debaixo de uma ponte só que, desta vez, estava feliz por nela se encontrar. “Sejam felizes”, arrebatou em termo de despedida. Naquela hora que soube a pouco – menos para as nossas costas – era difícil encontrar alguém que não tenha ficado naquela tarde.
Passando para um cenário mais noturno, o preferido do Jameson Urban Routes, o calor que pairava durante aquela tarde de sábado refugiou-se na sala de concertos do Cais do Sodré, especialmente quando os Mendrugo subiram a palco. O projeto dos irmãos Victor e José Luís Herrero desde cedo conquistou o público, bem mais numeroso que a sessão da tarde, através da sua simplicidade, simpatia e muito, mas mesmo muito humor: não sabendo se deveriam dirigir-se aos presentes no seu nativo espanhol, o predominante português ou o universal inglês, optaram pelas três línguas ao mesmo tempo, causando momentos de boa disposição através de traduções no mínimo hilariantes. Com risos contagiantes a ecoar por toda a sala, a trupe espanhola sabia que estava a fazer um bom trabalho nos intervalos entre canções, faltando fazer o mesmo no decorrer das mesmas: concebendo um folk enraizado na música tradicional espanhola, o aglomerado de músicos que trocavam os seus instrumentos com a passagem de cada música, como as fortemente aplaudidas “La Breva” ou “Manolo”, desenterrava sons reminiscentes da Natureza e da pureza que esta carrega, transpondo as gargalhadas das suas intervenções para sorrisos suscitados por emoções.
Não estivesse já assegurado que tinham o público rendido, lá vieram os elogios da praxe ao nosso país, só que, como todo o concerto, feitos de uma maneira divertidamente original: “visto que o nosso concerto está a ser gravado, deixem só telefonar à nossa mãe; ela insistiu para que fossemos a Fátima enquanto cá estivéssemos, não sei é se teremos tempo, visto que não nos apetece nada sair desta cidade maravilhosa” elogiou Victor Herrero, antes de dedicarem “Santa Cristina” ao público português e, posteriormente, adaptarem a sua muito popular “Estrella Fugaz” para uma versão portuguesa, de nome “Estrela Cadente”, com as traduções sendo feitas no momento e perdendo um pouco o nexo da letra, mas compensando com as risadas gerais, tanto do em cima como fora do palco. Para terminar, realçaram a ideia previamente estabelecida por Lonnie Holley de felicidade, mas com uma ‘ligeira’ alteração: “tirem a vossa roupa, dispam-se, entreguem-se, façam bebés. Os vossos pais fizeram um excelente trabalho ao fazer-vos, agora é altura de retribuir o favor e procriar o planeta. Sejam felizes!”, incentivou antes de dar o concerto como encerrado através de “Macho y Hembra”, os machos, as fêmeas e o amor que os envolve.
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Amor. Muito amor. Todo o amor. Quando Cate Le Bom abandonou o palco do MusicBox, palavras escasseavam para agradecer o autêntico furacão rock que abalou a sala e os presentes, abanando a linha de felicidade que os outros artistas tão gentilmente lhe serviram numa bandeja. A gaulesa causou um estrondoso impacto a partir do momento em que a sua rebeldia soltou-se nos primeiros acordes de “Crab Day”, faixa inicial do disco que também lhe dá nome e tem todo o potencial de vigorar em diversas listas dos ‘melhores do ano’. Possuidora de uma voz frágil com toques de doçura, mas envolvente e assustadora nos momentos chave, a artista poderia muito bem limitar-se a ficar no seu canto do palco a dar vida a palavras, mas isso só não lhe seria chato como também um desperdício enorme para o seu talento, visto que esta mulher arrebata qualquer alma quando uma guitarra lhe cai nos braços. Aliás, durante a sua hora de brilharete, energia foi algo que nunca faltou a Cate Timothy, o seu nome verdadeiro, sendo raros os momentos em que se dirigia ao público para trocar mais do que um simples “obrigada”.
A escassez de afetos para com os fãs pode ser subentendido como a sua forma de não tornar a componente lírica da sua atuação mais deprimente do que aquilo que as suas canções transparecem, um dos seus pontos fortes e que lhe é sempre aplaudido. Contudo, o ritmo alucinante com que conduz o concerto não oferece o tempo necessário para o ‘parar-escutar-avaliar’ que tanto Crab Day e Mug Museum exigiam-no ser, mas é disto que se fazem concertos: momentos fugazes que se vão tornando em memórias a longo-prazo, e nisso Cate foi irrepreensível. Por maior que seja o talento que lhe é atribuído, a gaulesa aufere da presença da sua banda de apoio – J.T., Daniel Rhode e o seu mais que tudo, ‘Sweet Baboo’ – que a ajudou a elevar a fasquia das suas músicas quando interpretadas em palco: com canções dos seus últimos discos distribuídos de igual modo, “Wonderful”, “I’m a Dirty Attic”, “Duke” ou “Sisters” fizeram as delícias de um público que tanto dançava no seu lugar como trauteava um misto de guitarradas com palavras, mantendo sempre a mesma pujança até ao término marcado por “What’s Not Mine”. No final da coisa, Cate Le Bon não foi só a heroína da noite como também conquistou o seu lugar no coração dos portugueses, que deixaram o MusicBox perto da lotação total.
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Logo depois, o hip hop contagiante de Mykki Blanco iria deixar a sala do Cais do Sodré ao rubro mas, infelizmente, o nosso cansaço falou mais alto. No dia a seguir, o Jameson Urban Routes iria despedir-se em festa, e nisso, os portugueses são peritos, mas para tal, as nossas baterias teriam que ser recarregadas, tal como as de Cate depois de um concerto tão alucinante.
O Música em DX é parceiro oficial do Jameson Urban Routes 2016. Toda a informação estará disponível no nosso website em Reportagens > Festivais > Jameson Urban Routes > 2016.
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+ JUR’16 dia 25, O calor tropical dos heterónimos
+ JUR’16 dia 26, A dança dos noctívagos
+ JUR’16 dia 27, Entre dois mundos o equilíbrio
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+ JUR’16 Dia 30, a tónica dominante que é a dança
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Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Daniel Jesus
Evento – Jameson Urban Routes 2016
Promotores – Musicbox Lisboa | Jameson