noiserv responde pelo nome de David Santos e é um one-man-band. Mas não é só esta definição que o enaltece é, também, a capacidade emocional e talentosa com que cria música. Cada nota tem um significado e está no sítio certo. Cada palavra, cada som, cada loop são feitos de maneira a criar uma suavidade que tanto é cristalina como dona da maior opacidade que possamos imaginar. Ouvir um álbum de noiserv é como sentir tudo e nada. É como viajar num mundo mágico repleto de pequenos pormenores que tem a capacidade de nos fazer voar o mais alto possível mas, também, nos fazer ficar sem chão. Assistir a um concerto dele é uma lição de vida, ou várias! É um arrepiar até ao pêlo mais escondido e um humedecer de olhos. É um espectáculo demasiado belo a que todos deveriam poder assistir, nem que fosse uma vez na vida.
Após 3 anos, noiserv lança agora 00:00:00:00 e deixa todos boquiabertos e com uma perplexidade digna de génio. Decidiu fugir um pouco ao seu registo habitual e baixar a sua alma sobre as teclas do piano. Neste álbum, não encontramos sons de máquinas fotográficas, guitarras ou clicks, mas sim apenas a melodia suave e aveludada do piano. Um álbum audaz e de uma robustez gritantes, capaz de atacar de rompante qualquer coração mais sensível. São 8 as faixas que o compõem e dessas 8, apenas há registo da voz em 3 e não há necessidade de mais. A linguagem de cada nota tocada entra em nós e conversa connosco, tendo o poder de nos surtir sensações e sentimentos diversificados. A letra, quando existe, é suave como a melodia, dizendo em poucas palavras o mais forte e mais importante. Quando nasceu, estava pré destinado a ser a banda sonora de um filme que não existe. Talvez a história desse filme possa ser feita por nós e o papel principal sejamos nós próprios, com o bom e o mau, o triste e o alegre. Porque nem sempre a melancolia é triste e nem todo choro vem da infelicidade. Há muita beleza neste álbum e através dele, mais uma vez, conseguimos enxergar que a simplicidade, quando construída de pequenos pormenores, resulta na maior complexidade e criação de genialidade.
O álbum foi lançado no passado dia 28 de Outubro e vai ser apresentado na próxima quinta-feira, dia 10 de Novembro. O Música em DX aproveitou a oportunidade para falar um pouco com David Santos sobre este novo trabalho e a sua vida enquanto músico.
Música em DX (MDX) – O título 00:00:00:00 é um ponto de partida para alguma coisa?
David – Eu acho que pode ter várias leituras. A ideia inicial não era sequer ter a leitura de ser um começo em termos estéticos da música, era apenas a ideia de o disco poder ser a banda sonora de um filme que não existe e se um filme não existe, então as câmaras estariam no princípio e estariam nas 0 horas, 0 minutos, 0 segundos e 0 frames. Isto era a ideia inicial, depois fui começando a perceber essa ideia: de que poderia ser realmente o princípio não de que aqui para a frente eu fizesse tudo em piano, mas um princípio qualquer meu ou de quem ouça as músicas. Tudo pode ser um princípio porque estás sempre a começar coisas novas e agora já te digo que não é só a parte conceptual mas também esse registo de: a partir daqui se as músicas fizerem sentido para alguém isto pode ser o princípio de uma coisa qualquer.
MDX – Mas para ti, é um princípio?
David – Sim. Eu acho que cada disco é um princípio e é uma continuação. A vida dá várias voltas, estás sempre a começar do princípio mas o caminho que vais fazendo, supostamente, é sempre a seguir.
MDX – Então não se trata de uma contagem de tempo para nada…
David – Não. Acho que essa contagem fica totalmente em aberto porque tu não sabes sequer qual vai ser a velocidade a que as coisas vão andar.
MDX – Em relação à sequência das músicas: “três”, “sete”, “seis”, “quinze”, “onze”, “vinte e três”, “quatorze” e “dezoito” , tem algum significado?
David – Não tem também. Isso vem do tal conceito da questão da banda sonora, ou seja, se o filme ainda não existia então as músicas não tinham uma cena em que fossem existir, então que título é que as músicas teriam? À partida também não podiam ter um título, então os números que elas têm são os números da ordem em que foram feitas. Na altura em que fiz os meus rascunhos tinha para ai 30 e desses 30 ficaram estas 8, a que se chama “três” foi o terceiro rascunho que fiz. A ordem no CD foi a ordem que, para mim, soava melhor mas não foi a ordem com que as fiz. Acho que acaba por ser engraçado porque o 7 é o dia que eu faço anos e foi o primeiro single, mas ela já se chamava “sete” antes de eu decidir que era o primeiro single e foi giro o primeiro single ser o meu dia de anos. A “dezoito” é talvez, em termos de letra, a mais minha mesmo, e ser a 18 é fixe porque supostamente é a “idade”. Portanto há uma série de leituras que depois surgiram por acaso e que são engraçadas e batem certo, parece que tinha de ser mesmo assim.
MDX – Sem querer, este álbum ficou mesmo especial..
David – Eu sou uma pessoa que pensa muito em todo o conceito da coisa, nas capas e tudo mais. Neste parece que tentei simplificar o máximo possível e as coisas por eu não as ter aprofundado todas, de repente têm todas dezenas de leituras que se encaixam e é muito giro. Por exemplo, a ideia da capa ser transparente, vinha inicialmente do conceito de não poder haver uma imagem nem uma cor, ser transparente apenas, mas a partir da capa vês as músicas e aquelas músicas são um princípio para uma coisa qualquer e quando a fiz apenas queria que a capa fosse transparente. O conceito de ponta solta é uma coisa fixe, mas eu acho que quando fazes um disco, desde o alinhamento a tudo o resto, é bom quando anos mais tarde ou um mês mais tarde tu questionas todas as coisas e não mudavas nada ou tudo faz ainda mais sentido.
MDX – O que é que fez com que deixasses os teus instrumentos todos e te fixasses só no piano?
David – Eu digo sempre que os meus pais me deviam ter posto no piano quando eu tinha 6 anos para agora ser tudo intuitivo, mas como isso não aconteceu comecei a ter aulas de piano há uns 6 anos atrás, depois parei quando lancei o outro disco. O som do piano é algo que eu sempre gostei muito e já nessa altura pensava que talvez um dia conseguisse fazer um disco em piano. Depois parti o pé a jogar basquetebol em Fevereiro do ano passado e tive de ficar em casa por causa do gesso e como tinha lá o piano, que tinha comprado entretanto, comecei a experimentar as coisas e a partir daí comecei a fazer os tais rascunhos e foi quando pensei que era altura de fazer um disco novo e: ou ia para o mesmo sítio onde estavam os outros e tudo isto ia perder a altura, ou então arriscava um bocado e pegava naqueles rascunhos que tinha, quebrava com o que já existia e ficava satisfeito com pouco ruído.
MDX – E cantar em português também faz parte dessa mudança?
David – Isso vem porque nessas aulas de piano, na altura, quando cantava uma música qualquer, o inglês em cima do piano sempre me fez muita confusão, não sei explicar bem porquê, parecia que era mais quadrado, eu gostava de tocar uma nota e deixá-la respirar… e o português encaixava melhor ali no meio.
MDX – Dai também a falta de letra na maioria das músicas…
David – Sim. Se é para ouvir o piano, é para o ouvir. Até mesmo para ser uma banda sonora, a voz condiciona muito. É fixe, mas se ouvires uma música com voz enquanto estás a conduzir, por exemplo, aquilo leva-te para outro sítio, se tiver voz se calhar vais sempre para o mesmo sítio, sem voz vais para o sítio que tu quiseres porque só os instrumentos é que estão a falar. Já que estava a arriscar e a mudar as coisas todas, então mudei tudo.
MDX – “Eu não quero ver pior, só não quero ver melhor. Eu não quero ver melhor, só não quero ver pior. Eu só quero ver melhor.” O que é que queres ver e o que é que não queres ver?
David – Acho que todas as pessoas têm isso de estares eternamente insatisfeito com as coisas mas tens medo que essa insatisfação te leve a perder a satisfação que já tens com algumas, então estás sempre nesta de então é melhor não fazer nada, mas não é a cena de não fazer nada, é o medo. Eu na música sinto muito isso, tenho tido a sorte de parecer que ao longo da minha carreira nunca ter tido um fiasco, mas o facto de nunca ter tido um fiasco faz com que quando o tiver ser pior. Então tive muito receio das pessoas não gostarem deste disco e que este disco pusesse em causa tudo o que está para trás. Esta letra é um bocado isso, ela até terminava com o “eu só quero ver pior”, mas era algo mais negativo e para mim próprio fazia sentido ter um desfecho menos triste, porque se tu estás a lutar pelas coisas, elas têm de ser boas. Vem disso de no fundo quereres sempre melhor mas não quereres ficar pior e não sabes se é suficiente e andas ali às voltas, e isto dá para tudo. Cada vez que entro num palco e vejo imensa gente à minha frente não sei se vai sair bem ou não e à medida que vais fazendo mais coisas vais percebendo que se nunca nada muda tudo para bem, também nunca nada muda tudo para mal e é um conjunto de coisas que torna tudo bom e um conjunto de coisas que torna mau. Não é um concerto que faz tudo! Um concerto correr mal não é as pessoas não gostarem, é eu não querer estar a tocar e ter de tocar.
MDX – Mas.. Tu entras sempre de cabeça baixa, porquê?
David – Porque naquele momento ainda não mostrei nada.
MDX – E já tiveste algum dia em que não te sentias bem para tocar?
David – Não o concerto todo, mas há momentos em que podes estar num registo de muitos concertos seguidos e estares mais cansado.
MDX – Quando é que sentiste que a música era um caminho a seguir?
David – Não sei. Eu acho que ainda hoje é complicado eu dizer que sou músico e não faço mais nada a não ser isto, parece que de repente tens uma responsabilidade que te dá um peso demasiado grande e voltamos à letra outra vez. Mas desde pequenino, tinha para ai 11 anos, lembro-me numa festa na escola de estar alguém a montar uma bateria e eu ficar vidrado neles a montar a bateria. Por muito que na altura não percebas isso, aquilo é mais forte do que ir jogar à bola, por exemplo. Mas isto das bandas começou há 14 anos e fazer música para ai há 20. Era impensável que pudesse chegar a este ponto, mesmo sendo aquilo que eu queria. Nunca deixei de estudar para me dedicar à música porque nunca tive coragem de assumir que aquilo que eu queria fazer podia ser importante o suficiente para me deixar viver daquilo. Lembro-me na altura quando ouvia e via clips de Pearl Jam do olhar do Eddie a cantar a “Black” e que aquilo mexia muito comigo também, a maneira como sentia a música. Eu acho que, emotivamente, tu chegas onde quiseres, sempre!
MDX – Qual foi o primeiro instrumento que tiveste?
David – Foi a guitarra. Ofereceram-me quando tinha uns 12 ou 13 anos.
MDX – Falavas há pouco dos primeiros concertos… Lembras-te do primeiro concerto que viste?
David – Acho que foi U2 em Alvalade quando tinha uns 12 anos. Não sei bem se foi o primeiro mas lembro-me de lá estar e estar maravilhado com o tamanho daquilo, teve muito impacto. O meu pai devia saber que gostava de “coisas” de música e levou-me a um concerto grande.
MDX – E, já agora, há alguma banda que te tenha marcado mais desde pequeno?
David – No caminho há vários processos, há a parte inicial em que claramente foram os Pearl Jam e o Eddie Vedder que tem algo especial, depois aparecem os Radiohead que marcam enquanto estética: como é que o triste não é triste e como é que os pequenos pormenores são o mais importante e não o são? Eles ensinaram-me como algo que faz chorar pode não ser triste. Depois há o Yan Tiersen, Sigur Rós, Explosions in The Sky, mas isso já aparece quando tens formada a tua cena de miúdo.
MDX – O que é que te faz feliz?
David – Acho que é sentir que as pessoas gostam daquilo que estou a fazer. Parece um bocado inseguro demais mas eu acho que a música é um bocado isso: tu fazes para ti como algo obsessivo, mas só faz sentido se os outros gostam. Também me faz feliz estar com amigos e essas coisas todas mas o suporte da concretização pessoal duma coisa que vai crescendo ao longo dos anos é muito importante para conseguir ser feliz. Mais uma vez a questão do título poder ter a ver com tudo, mas é como se tu a cada concerto tivesses quase sempre a começar do princípio nessa questão de iludir e desiludir. Estar sempre a pensar na forma de fazer com que o concerto não seja uma desilusão.
MDX – A música faz-te chorar?
David – Faz! Nos meus concertos já me consigo controlar melhor mas a ver concertos, se ninguém me estiver a ver e se aquilo me estiver a tocar, não há problema nenhum. Se forem os Sigur Rós ou os Explosions In The Sky quase de certeza que sim…
MDX – Relativamente às histórias e momentos que vais contando e descrevendo entre as músicas, pode dizer-se que a tua discografia é uma auto biografia?
David – Sim! Acho que é mesmo! Se eu continuar a conseguir fazer música até aos 50 ou 60 anos eu próprio quando ouvir vou ficar diante da minha vida toda. Não que aquilo sejam histórias específicas mas as histórias emocionais estão todas ali. O primeiro EP era mais descontrolado, o primeiro disco era mais negro, o segundo é um pouco mais animado, este é um pouco mais para dentro mas com mais coragem. Se os discos continuarem eu vou continuar a ter a biografia actualizada.
MDX – Os pequenos pormenores são importantes para ti?
David – Sim, são sempre. Até porque por não ser um músico virtuoso em nenhum instrumento, as minhas músicas foram sempre construídas por pequeninas coisas todas juntas e mesmo agora no piano, ouves uma música e parece que está ali um grande pianista mas aquilo são 5 ou 6 pianos ao mesmo tempo. Portanto acho que a vida são os pequenos pormenores, claro que sim.
MDX – E os pequenos instrumentos também.
David – Sim, claro.
MDX – Queres levantar um pouco o véu sobre o que vai acontecer no dia 10?
David – O principal é tocar pela primeira vez grande parte das músicas deste disco. E depois é todo aquele jogo do encaixe entre o registo novo e o registo antigo. Podia ter optado por fazer primeiro uma coisa e depois a outra mas assim estava a separar uma coisa que não é separável, porque no fundo é um bocado a minha vida e o percurso que fui tendo. O concerto será uma tentativa de mostrar a mim mesmo e às pessoas que isto é tudo a mesma pessoa. O concerto será isso: os altos e baixos que a minha música tem e agora com músicas novas.
MDX – Quando pensas no futuro, o que é que vês?
David – Não sei bem. Gostava de ver as coisas sempre a continuarem. Gostava que um dia aquilo que fiz ficasse mais tempo do que aquele que eu ficar, portanto gostava que o futuro fosse a minha música continuar a marcar as pessoas o máximo possível para que ficasse além de mim um bocadinho. Não que isso seja uma obrigação, eu acho que as músicas que eu gosto ficarão comigo até ao tempo que eu deixe de existir.
O concerto da próxima quinta-feira tem lugar no Teatro São Luiz e promete ser algo marcante. O Música em DX aconselha-vos a não perder esta noite.
Podem ouvir o álbum aqui: https://noiserv.bandcamp.com/album/00-00-00-00-2016
Entrevista – Eliana Berto
Fotografia – Luis Sousa