Primeiro dia da semana e primeiro dia de frio, neste Outono que nunca mais largava o Verão. Mas esses não foram motivos para não tornar o grande auditório do Centro Cultural de Belém acolhedor.
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A sala esteve suficientemente composta para receber o músico e compositor Wim Mertens, já um habitué em terras lusas. Último de três concertos seguidos, integrados no Festival Misty Fest, com a primeira parte assegurada pelo nosso magnífico André Barros, que acompanhado pelo violino deu o mote a uma noite acolhedora.
+ fotos na galeria Misty Fest’16 Dia 7 Novembro André Barros
O compositor belga (nomeado para Embaixador Cultural da Flandres) tem desde 1980, um repertório invejável. Com formação académica de base em Ciência Política, foi na área da musicologia que fez carreira, tendo sido o autor do livro “American Music Minimal” (1988), uma compilação da ideologia e história da música minimalista americana, onde destaca Philip Glass e Steve Reich. Fiel a um registo avant-garde e minimalista dentro da música clássica, Wim Mertens tem no seu trabalho discográfico composições para cinema e teatro, e até para desfiles de moda (casa Dior). É por isso um músico e compositor sui generis, que consegue em mais de duas horas de concerto não repetir métricas e surpreender a cada tema.
Acompanhado pelos extraordinários músicos, a russa Tatiana Samouil (violinista), e o seu conterrâneo Lode Vercampt (violoncelista), puseram o Grande Auditório do CCB a aplaudir de pé mais do que uma vez. No diálogo de instrumentos, o violino acabava quase sempre por ter a primazia na sua presença, o violoncelo uma espécie de moderador entre este e o piano que desbravava o caminho. “Dust of Truths” é a 3ª parte de uma trilogia, “Cran aux Oeufs” e alguns registos de “Charaktersketch” e o mais recente, “What are we locks, to do?”. Esta trilogia teve inspiração no “conflito entre o império Romano e o Egipto, entre duas civilizações, que pode até ser visto como uma metáfora para tempos modernos”. Foram estes conflitos na primazia cultural, a Biblioteca de Alexandria e a Batalha de Actium (Grécia antiga), que tiveram na génese da composição destes três trabalhos apresentados neste concerto.
+ fotos na galeria Misty Fest’16 Dia 7 Novembro Wim Mertens
O piano fala com o violino, enquanto o violoncelo tímido solta uns acordes fugidos. O violino entra duas notas atrás do piano, e num queixume vai subindo o tom. O violoncelo faz uma lamúria de vizinho passivo, aquele que está por detrás das cortinas da janela e não se mostra.
O violino conta as suas fatalidades, de um destino que por ele foi escolhido. Um destino que indicava ser o do sofrimento das almas, mas que no final, muda de rota e escolhe a clareza do piano que acalma a sua inquietude. Retorno ao equilíbrio harmonioso, onde o violino acompanha o piano e o violoncelo. Mas numa nota ou outra, de soslaio, o violino vai dominando a melodia. Sem precipitações, sem grande apego, apenas acompanhando e fazendo-se notar ligeiramente. No final solta todas as afrontas e é ele que domina, uma vez mais.
O violino numa conversa pegada com o piano, desta vez mano-a-mano, cara-a-cara sem interrupções. O violoncelo vai concordando, ora com um ora com o outro. Num único som, terminam os três, na mesma precisão de tempo.
Wim Mertens levanta-se, agradece a ovação do público e a magnifica prestação de Tatiana e Lode (em praticamente todas as músicas).
Na segunda parte, o registo foi maioritariamente cinematográfico. Cenários vitorianos, onde na imensidão do verde rectilíneo, caminham de espartilho apertado virgens casadouras de braço dado com Lords de cheiro a naftalina. Mil e uma noites nas dunas do deserto saudita, onde os camelos descansam extenuados. Paisagens da savana africana, num por do sol alaranjado, uma silhueta de leão ao longe por detrás daquela árvore. Até uns laivos de Fado e um ligeiro Flamengo se conseguem ouvir nas composições de Wim Mertens.
Dois encores numa entrega total de Wim e os seus dois músicos. Uma noite recheada de estórias minimalistas, num intercalar de registos imponentes e humildes. Um aplauso imenso para a arrepiante Tatiana Samouil. E o Misty Fest continua.
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Toda a informação sobre o Misty Fest 2016 está disponível no nosso website em Reportagens > Festivais > Misty Fest > 2016.
Os artigos e fotografias de cada dia estão disponíveis em:
+ Misty Fest’16, A Ilha deliciosamente utópica de Piers Faccini
+ Cass Mccombs, O anfitrião por excelência
+ Wim Mertens, Pedaços minimalistas
+ Peter Broderick ou o mago do piano?
+ Ternura na voz e Pop nas teclas, Scott Matthew e Rodrigo Leão
+ Andrew Bird, O canto elegante do violino
+info em http://www.misty-fest.com/ | https://www.facebook.com/MistyFest/
Texto – Carla Sancho
Fotografia – Luis Sousa
Evento – Misty Fest 2016
Promotor – UGURU