Imagine-se um concerto onde uma vertiginosa sucessão de notas e ritmos tanto nos levam a abrir a boca em descrédito quanto a abanar o corpo ao som de tal combinação. Tão técnicos quanto orelhudos, duas qualidades que os acompanham desde a sua génese, os Memória de Peixe apresentaram o seu novo Himiko Cloud ao fim de um interregno de quatro anos, mostrando-se empenhados em demonstrar que o seu álbum autointitulado não foi um mero acaso de sucesso. A casa não esteve cheia, mas nem foi preciso estar para fazer a festa perante o retorno deste “dynamic duo”.
Tendo-nos seduzido os ouvidos com um Indie Rock simultaneamente matemático e repleto de deliciosas e perenes melodias no ido ano de 2012, os Memória de Peixe não andaram a dar grandes sinais de vida nos últimos tempos, fora o ocasional concerto. Agora percebemos porquê. Para além de terem vidas profissionais extra banda e até outros projectos musicais, os dois intrépidos músicos que compõem esta entidade devem ter investido bastante tempo para edificar a construção babélica que é Himiko Cloud. Este novo trabalho vê os Memória de Peixe afastarem-se, mas não em demasia, da sua vertente mais veranil para mergulharem numa panóplia de referências que devem tanto ao universo cósmico como a esse farto mundo de referências que são os videojogos, especialmente aqueles com duas décadas em cima.
Supercollider a começar expõe de imediato essas influências, soando a um tema que não ficaria descabido num RPG nipónico, retendo no entanto aquela sonoridade de camadas sobre camadas de melodias irrequietas que já podemos considerar como própria dos Memória de Peixe. Os olhos dividem-se incansavelmente: olhamos para as projecções que transpõem de forma exemplar e criativa os sons num médium visual? Ou direcionamos a nossa atenção para os músicos, com Miguel Nicolau entre as suas monumentais pedaleiras e os seus sucedâneos loops de virtuosidade na guitarra e o não menos irrequieto Marco Franco espremendo todo o potencial da sua bateria naquele estilo heterodoxo? São escolhas complicadas, mas são boas escolhas de se fazer.
Ao vivo apercebemo-nos de que, com a nova temática, estes Memória de Peixe estão significativamente mais intensos. Seja pela bombardeamento que Arcadia Garden proporciona (reminiscente daqueles shoot’em ups de mil obstáculos impossíveis de evitar), a ambiência meio distopia cyberpunk raiada de neons que é Midnight Run ou o caos controlado nos limites de Lazeria Maps, o duo mostrou um som mais musculado sem perder a sua essência. Prova disso mesmo são, por exemplo, Haverö’s Dream, que consegue a proeza de ser frenética e ao mesmo tempo relaxante na sua toada jazzística, ou Herbig-Haro, faixa que encerra o disco de olhos postos no céu, sonhadora enquanto mira galáxias, sóis, cometas, nuvens de gás e outros tantos infindáveis objectos celestes.
Contudo, como se estava à espera, os Memória de Peixe não vieram só trazer novidades fresquinhas, ou melhor, mais fresquinhas, já que os seus temas de sempre não perderam nem um pouco do seu encanto. Fishtank trouxe o Verão de volta e com ele a espetacularidade que é assistir a todas as suas peças encaixarem em harmonia num final triunfal e 7/4 continua ser a demonstração de uma banda orgulhosa em expor o seu método de trabalho no título. Após uma curta e desavergonhada pausa para encore, DayJob foi o descontraído espraiar antitético ao seu nome que nos amoleceu para de seguida levarmos com um reprise de Arcadia Garden. Podia ser chato ouvirmos a mesma música duas vezes, mas nada nos Memória de Peixe é chato, mesmo que tentem. O facto de Miguel Nicolau se ter dirigido ao público no início com um “Espero que se divirtam e até já” parece um acto de falsa modéstia em retrospectiva. Estes são os Memória de Peixe, afinal de contas, a diversão já estava garantida à partida.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Ana Pereira