Diogo Abreu, Manuel Siqueira, Pedro Zuzarte e (João) Bernardo Afonso constituem os Lotus Fever, banda portuguesa de rock alternativo que causou um burburinho considerável quando, em 2014, lançaram o seu primeiro disco Search For Meaning, fruto de uma campanha de crowdfunding. Estes quatro rapazes são a prova viva de como a idade não passa de um denominador relativo no panorama musical: desde cedo que lhes foi reconhecido o talento e a versatilidade para produzir temas sólidos e competentes, que levaram a ter um dos discos mais aplaudidos daquele ano. Naturalmente, as comparações a nomes grandes surgiram, comparando-os a um choque de gerações entre Beatles e Frank Zappa com os mais recentes alt-J e Tame Impala, mas a verdade é que estes miúdos não precisam que sejam estabelecidas tal ligações: eles são os Lotus Fever, ponto.
Para 2016, “Still Alive For The Growth” vem dar continuidade ao trabalho iniciado com o disco primeiro, com um grande detalhe pelo meio: o disco foi produzido inteiramente pela banda, no seu recente estúdio na Avenida da Liberdade. Não havendo local mais adequado para se falar sobre o dito, o Música em DX teve a oportunidade de falar com os quatro no seu novo refúgio, um pequeno T1 convertido numa sala de ensaios barra sala de gravações. Na companhia de Kurt, o fiel amigo de quatro patas dos Lotus Fever, levantámos um pouco o véu sobre o novo disco, o processo de gravação e como é ser uma promissora banda no panorama musical português.
Música em DX (MDX) – Recuando atrás no tempo, como é que vocês se conheceram e como é que surgiram os Lotus Fever?
Pedro: (risos) Então, basicamente, o pai do Diogo, que é diplomata, estava a viver com ele na Índia. O João…
Bernardo: Bernardo, se faz favor (risos).
Pedro: Desculpa (risos). O Bernardo estava a fazer voluntariado durante os meses do verão, e como eu e o Manel estávamos de férias – o Manel conhecia o Bernardo porque eram da mesma escola, eu sou primo do Diogo – decidimos ir lá visitá-los, perto do final do voluntariado do Bernardo. Já com os quatro todos juntos, fomos fazer umas visitas turísticas pelas redondezas e num desses dias visitámos uns pântanos num hovercraft e, nesse mesmo dia, apanhámos uma valente febre a que os locais chamam de “febre de lótus”. Depois, fomos todos para casa do pai do Diogo, onde haviam alguns instrumentos e começámos a tocar para passar o tempo. Foi assim que surgiram as primeiras músicas dos Lotus Fever.
MDX – Relativamente ao vosso gosto musical, todos partilhavam dos mesmos gostos?
Diogo: Uma grande vantagem da banda é que cada um de nós ouve um pouco de tudo; por exemplo, antigamente, ouvia imenso metal, que era algo, com a exceção do Bernardo, que eles não ouviam. O Pedro interessava-se por bandas das quais algumas eu conhecia e as outras não, tendo depois começado a ouvir e a gostar também, o que levou a que arranjássemos um “núcleo” de artistas de que todos gostássemos e a criar uma sonoridade à volta disso.
Bernardo: Hoje em dia há meia-dúzia de bandas comuns que todos nós gostamos e quando ouvimos música, há uma espécie de filtragem caso essa seja porreira e, se isso acontecer, acabamos por mostrá-la uns aos outros.
MDX – Tentam incorporá-los na vossa sonoridade?
Bernardo: Acho que é uma coisa inerente, porque ninguém inventa nada sem que tenha sido inspirado por algo; ninguém que não tenha lido um livro consegue escrever um. Apanham-se sempre pormenores e o processo criativo relaciona-se um pouco com isso, da junção das nossas influências com aquilo que se pensa e se sente, mas é aí que surge a linha ténue entre o ‘copiar’ e o ‘tentar fazer algo genuíno e diferente’, que se goste. É um pouco complicado definir essa linha, mas conseguimos traça-la porque não pensamos em recriar músicas mas sim dar vida às nossas ideias.
Manuel: Também já fomos muito formatados a partir do momento em que uma ideia é apresentada e temos que decifrar o tipo de abordagem que temos que ter para agradar aos outros. Visto que já nos conhecemos há imenso tempo, conseguimos ver aquilo que e aquilo que não funciona, o que leva a moldar um pouco o estilo da banda: a quantidade de abordagens que se excluiu porque não irão agradar o conjunto… se é que isto faz algum sentido? (risos)
MDX – Dando um salto no tempo para 2013, para a vossa campanha de crowdfunding, que levou a que surgisse o vosso primeiro disco, e onde angariaram cerca de 5000€ para tal. Sentiam algum tipo de responsabilidade para com o voto de confiança dado pelos vossos fãs e admiradores?
Pedro: Não é que se tenha sentido uma certa responsabilidade para com eles, mas sim connosco próprios, de fazermos o melhor trabalho possível e de modo a provar que o nosso talento e trabalho chegam ao sítio que nós pretendemos. A maior responsabilidade acabou por ser para nós mesmos, especialmente a nível artístico.
MDX – Um ano depois, Search For Meaning foi lançado. Estavam satisfeitos com o resultado final do primeiro disco?
Manuel: Há vários momentos: o que achávamos antes de o gravarmos, o depois e o que achamos agora.
Pedro: É um pouco isto, sim. Hoje em dia, a nível musical, estamos muito contentes. Claro que se fosse agora, faríamos as coisas de maneira diferente visto que, agora, temos mais material, o que nos levaria a explorar as coisas de outra maneira, mas na altura, para aquilo que tínhamos, ficámos muito contentes. Acima de tudo, aprendemos imenso. Contudo, a nível de produção, sentimos que não foi uma boa representação daquilo que queríamos ali, o que levou a que, para este disco, fossemos nós a produzi-lo aqui no estúdio.
MDX – Quereria o nome do disco dizer que vocês ainda estavam na procura de uma identidade?
Pedro: Eu acho que se pode dizer que se está sempre à procura de uma identidade…
Bernardo: A pior pergunta que nos podem fazer seria “como é que conseguem definir o vosso estilo?”, apesar de eu entender a necessidade de tal por compreender que uma pessoa que não componha e não esteja tão envolvido neste ramo da música como nós queira saber aquilo que vai ouvir; rock, rock alternativo ou psicadélico. Contudo, é muito difícil definirmos tal coisa – e isto não é a arrogância de músico, de querer parecer intelectual – porque não nos conseguimos identificar num estilo. Está muito entranhado na nossa genética enquanto banda querer fazer algo de diferente do que aquilo que fizemos anteriormente, e vai um pouco em conta com aquilo que o João disse: ainda procuramos a identidade da banda.
Manuel: Provavelmente, nunca vamos encontrar a identidade da banda mas sim o mais próximo daquele momento em que se estava. Evoluímos, portanto.
MDX – O vosso disco foi muito elogiado pelos meios de comunicação que chegaram mesmo a considerá-lo como um dos melhores de 2014. Como foi esta sensação?
Manuel: (risos) É difícil não responder com arrogância a esta pergunta… Face aquilo que existe no mercado português, até acho que devia ter sido mais apreciado do que aquilo que foi. Com isto não quero dizer que as pessoas que o ouviram não o apreciaram o suficiente, mas sinto que, no geral, não chegámos às pessoas que gostaríamos de o ter feito; a quantidade diga-se. Nesse sentido e embora tenhamos recebido críticas positivas, sentimos que a nossa música merecia mais atenção do que aquela que realmente teve.
Bernardo: Tivemos uma receção positiva de quem o ouviu, o que foi ótimo para nós pois foi uma valorização do nosso trabalho. No entanto, é difícil de persuadir pessoas que não nos conheçam e não tenham interesse em ‘perder’ o seu tempo a ouvir uma música de cinco, quatro minutos quando os primeiros vinte segundos não lhe ficaram no ouvido. Nos filmes, por exemplo, as pessoas estão mais predispostas a entregar-se durante uma hora e meia a uma coisa diferente e que não lhes seja familiar; já na música, parece que está tudo muito focado em ouvir apenas músicas alegres e com um padrão de verso-refrão-verso-refrão. As questões que nós sentimos são “como é que chegamos ao público que nós achamos que vai gostar da nossa música?” e “como é que atingimos certos pontos importantes na nossa carreira se fizermos este tipo de música?”, ou seja, sendo um pouco mais concreto, há uma grande exigência no mercado, não só em Portugal mas no mundo inteiro, que coloca os músicos numa posição em que têm que saber como impor arte nas suas canções e, para nós, isto não faz qualquer sentido pois desde quando é que uma banda para promover o seu trabalho consegue implementá-la em músicas de quatro a três minutos?
MDX – Em prol do vosso primeiro disco, vocês tocaram por Portugal de norte a sul. Como é que foi embarcar nessa nova aventura, numa carrinha e com os vossos instrumentos às costas?
Manuel – (risos) É que foi mesmo numa carrinha, daquelas grandes e com nove pessoas lá dentro.
Bernardo – Foi mesmo muito bom, tanto que uma das coisas que mais queríamos era voltar a andar numa tournée para voltar aos mesmos sítios.
Pedro – Foi uma grande experiência, de facto.
Manuel – Foi fora das grandes cidades, onde os bares locais trazem artistas ‘porreiros’ para dar música à malta, em que tivemos uma abordagem muito pessoal com as pessoas – Évora, Vila Real, Coimbra, …
Bernardo – Quando tocamos em Lisboa, dentro do nosso subconsciente, vemos os nossos amigos e alguns familiares; estamos em “casa”. Agora, ir para um sítio em que estamos fora da nossa zona de conforto e onde não conhecemos ninguém, é espetacular a amabilidade das pessoas espetaculares que nos abordam, que gostam do nosso trabalho, ou até mesmo de pessoas que não nos conhecem.
Diogo – A parte gira de tocar fora de Lisboa é estar num bar, que recebe bandas e dá concertos, e tem um público fiel que vai assistir independentemente de quem for; aconteceu-nos ter pessoas a falar connosco depois dos concertos a elogiar-nos mesmo não nos conhecendo previamente.
MDX – 2016 e novo disco no horizonte: Still Alive For The Growth. Relativamente ao primeiro, que mudanças existiram relativamente ao processo de gravação do primeiro?
Diogo – (risos) A principal mudança aconteceu com este estúdio, em que passámos de ensaiar quatro horas por dia para passar cinco meses, todos os dias, aqui fechados. Foram cansativos, confessamos, mas foram muito bons na medida em que olhámos uns para os outros e pensámos que tínhamos um disco pela frente e tínhamos que nos empenhar.
Bernardo – De um modo geral, foi completamente diferente daquilo que tínhamos feito até agora.
MDX – Esse empenho e mudança notou-se logo com os primeiros singles, “Animal Farm” e “Dogs and Bones”. Atribuem esta evolução na sonoridade ao vosso crescimento enquanto músicos?
Bernardo – O álbum inteiro foi produzido por nós os quatro, ou seja, a grande mudança acabou por ser o controlo total que nós tivemos em relação ao disco; foi muito giro mas ao mesmo tempo também foi muito complicado porque nos tivemos de “disciplinar” e não houve influências externas no processo.
Manuel – Com base na experiência que tínhamos tido anteriormente, nós nunca gostámos da influência de terceiros porque aquilo que queríamos era construir algo de acordo com aquilo que tínhamos imaginado. Para tal, a melhor forma de alcançar tal seria sermos nós próprios a fazê-lo.
Bernardo – Isto não foi uma discussão tomada de ânimo leve. Quem perceba de produção sabe que é algo de muito sensível porque em 90% dos casos é benéfico ter-se um produtor com uma visão de fora para dar a sua opinião sobre o que está a ser feito; simplesmente achámos que tínhamos chegado a um ponto em que nós próprios conseguíamos fazê-lo visto que, no passado, nós estivemos sempre no controlo durante o processo criativo.
Manuel – Para pôr isto mais claro, em vez de darmos total liberdade ao produtor, tentávamos com que ele conseguisse representar o que nós queríamos.
Bernardo – Chegámos à conclusão que seria possível fazermos isso (produção do disco): investigámos, estudámos sobre o assunto, tivemos a perceção que conseguíamos fazer a produção, gravação, mistura e masterização, fez-se um inventário sobre o material que seria necessário, investimos em equipamento, etc. Respondendo à questão inicial, “o que é que mudou?”, numa palavra: tudo (risos).
MDX – Criando um cenário hipotético: para o vosso terceiro disco, gostariam de ser novamente vocês a produzir o disco?
Manuel – Se nos fosse cedida uma grande sala de gravações em que o espaço fosse incrível e tivesse excelente equipamento, isso seria um enorme upgrade face aquilo que nós conseguimos, mas aí diria que a parte da produção continuaria a ser nossa porque não nos vemos a meter o nosso trabalho nas mãos de outra pessoa. Agora, quando somos nós, acaba por ser um pouco redundante e um processo muito mais cansativo até se conseguir um resultado.
Diogo – E a gastarmos dinheiro, porque compramos mais material.
Bernardo – Corre-se sempre um risco, mas também se corre com um produtor. Sendo honesto: estamos no século XXI e hoje em dia há dois aspetos a ter em conta: 1) os músicos têm as ferramentas e a informação para conseguirem saber disto (produção); 2) por mais tempo que se passe a discutir isto a verdade é que as editoras acabaram, a música e a maneira como esta é vendida mudaram completamente e os discos nunca mais voltarão a fazer dinheiro. Nos dias que correm, um músico tem que ser sustentável tendo, cada vez mais, de abdicar de intermediários e isso é o que nós fizemos para este disco e queremos fazê-lo o máximo possível.
MDX – Pegando na carga pessoal que inseriram neste disco, falemos sobre “Animal Farm”. De onde surgiu a ideia de combinar a obra de George Orwell com a vossa música?
Pedro – (risos) Por sugestão do Bernardo e do Ricardo (antigo manager) li o livro e, passados uns meses, fiz a base da música com essa letra, embora não estivesse a pensar na obra em si quando a escrevi, mas a partir do momento em que nos apercebemos da conotação existente começámos logo a trabalhá-la no sentido de aproximá-la da obra. A ideia de juntar a animação a este processo ocorreu no verão quando já tínhamos a música quase pronta e tivemos essa possibilidade com a nossa designer, que também fez a capa dos dois discos, de fazer algo de interessante e contar a história no vídeo.
MDX – De um modo geral, como é que descreveriam o novo disco? Pondo agora de parte a vertente da produção e aprofundando mais a ‘evolução’ que se verificou.
Pedro – O mais importante, o nosso principal foco, manteve-se, que foi o sentimento que depositamos nas canções. Evoluímos bastante ao termos modificado a abordagem sonora e dos arranjos nas músicas, estando esta parte muito envolvida com a produção.
Bernardo – Está um disco mais eletrónico, não num registo dançável mas sim ao ter muito mais sintetizadores e processamento de voz. A nível de som está menos psicadélico e mais focado, mais ‘negro’ de certa forma; como se o psicadelismo fosse substituído por algo mais sombrio.
Manuel – No início quando as bandas são pouco experientes têm muito a tendência de abordar as músicas da mesma forma como elas apareceram; se apareceu um riff de guitarra, a música é trabalhada em sua volta. O passo seguinte para uma banda dar seria trabalhar nesse arranjo de uma maneira completamente diferente – pôr o riff de parte e focar no resto – e isso foi algo que aconteceu muito entre nós, onde músicas foram feitas ao partirem de bases que nem se quer acabaram no disco e, provavelmente, nem nos lembramos de como eram.
Bernardo – Resumindo, é um álbum que contém tanto momentos melancólicos e profundos como mais vívidos, e todos sem preconceitos; deixou de existir aquele ‘pensar-duas-vezes-antes-de-fazer-uma-música-mais-deprimente’ e neste disco, se tivesse que existir uma música desse género e se achássemos que era o melhor caminho, seguíamos em frente sem qualquer tipo de preocupações em não fazer algo triste ou alegre. Deixámo-nos ir por onde a música nos levasse.
MDX – Para terminar e pegando no nome do disco, consideram que ‘ainda estejam vivos para crescer’? Que com toda a história por trás do disco, isto foi um teste a vocês próprios?
Bernardo – Por vezes sinto que isto só agora é que é o início.
Pedro – Por maior confiança que uma banda tenha em si mesmo, há sempre espaço para crescer. Quando uma pessoa acha que já está no seu auge, foi a morte do artista.
Diogo – A meu ver, acho que nunca vou estar onde quero, vou estar sempre aquém daquilo que ambiciono: vou sempre desejar mais, crescer mais ou investigar mais. Olhando para nós, pode-se dizer que está tudo bem mas poderíamos estar melhor, sempre. Se o próximo disco se revelar melhor do que este, nessa altura tenho a certeza que vou continuar a pensar que poderia ter ficado melhor.
Manuel – Nós somos todos perfecionistas e às vezes há muito a tendência de se olhar para trás e vermos o que é que poderia ter sido feito melhor, mas, dito isto, conseguimos olhar para que fizemos com imenso orgulho, que acaba por ser o objetivo máximo: nunca vamos deixar de ser perfecionistas, nunca vamos estar 100% felizes com o resultado de um disco porque o faríamos de maneira diferente dali a uns anos e conseguimos ter orgulho no resultado que mostramos.
Durante uma hora e muito de conversas, orgulho era algo que transbordava pelos olhos destes quatro jovens (adultos). O que eles alcançaram no espaço de meses é avassaladoramente impressionante, especialmente tendo em conta a sua idade; é bom saber que ainda há jovens com tanta determinação no nosso país. Após todas estas confissões, assim como conversas paralelas pelo meio, há duas coisas que se tornavam cada vez mais claras ao longo dos minutos desta conversa: que os Lotus Fever são uma das bandas com um futuro risonho no horizonte e que a noite do dia 30 de novembro, no MusicBox, será o consagrar de árduos meses de trabalho e dedicação. Um concerto a não perder.
Entrevista – Nuno Fernandes
Fotografia – Luis Sousa