A tradição é a transmissão de costumes e crenças numa comunidade. A juntar às rabanadas, ao bacalhau e à magia das luzes nas janelas, The Legendary Tigerman (one man band) juntou-se à tradição natalícia, apesar de uma antítese da mesma. Há alguns anos que Paulo Furtado sobe ao palco da Galeria Zé dos Bois em Lisboa e exorciza o Natal nos acordes rockeiros de “Fuck the Christmas”. Pela continuidade assídua do evento, a expressão “tradição” faz aqui todo o sentido. A Rua da Barroca recebeu The Legendary Tigerman 3 noites praticamente seguidas, 23, 25 e 26 de Dezembro. Nós estivemos na primeira e ainda com os níveis de colesterol razoáveis.
Às 23h00 a sala dos concertos abriu-se e já eram muitos os que estavam à porta para se posicionarem nas primeiras filas. A interferência dos telemóveis nas colunas fizeram-se ouvir assim que Paulo Furtado pegou na guitarra e se aproximou do(s) microfone(s). Blazer preto, camisa preta bordoada com um discreto brilho festivo (natalício ou cowboy?), calças pretas e óculos escuros suficientemente claros para ver uma sala cheia de gente bem-disposta e sedenta das suas guitarras. Duas músicas no registo one-man-band, servidas numa entrada quente “I’ll make you mine”. Subida ao palco do companheiro de estrada, Paulo Segadães (Sega, bateria e voz) e de João Cabrita (saxofone barítono). Furtado troca de guitarra, despe o blazer e numa cumplicidade maturada, os cavaleiros do asfalto tiram o “menino” das palhas e começam o exorcismo natalício, “Naked blue”! “& Then Came the Pain” do estrondoso álbum Femina (2009), voz puxada nos recônditos do micro metálico e Sega entra no refrão a todo o pulmão. Um falso arranque de “Bad Luck Rithm’N’Blues Machine” (Mascarade 2006) que fez soltar gargalhadas a todos, mas que não foi motivo para acanhamentos.
A guitarra e o saxofone ao despique nos acordes enquanto os sintetizadores seguram a malha, “Alone”. Depois de uma segunda troca de guitarra e saída do baterista, um dos momentos da noite com “Tango till they’re sore”, do (já) lendário Tom Waits. Um cenário cinematográfico num diálogo intenso entre a guitarra e o saxofone (“I’ll tell all my secrets but I lie about my past/And send me off to bed for evermore”) que nos deixou anestesiados e de olhos fechados.
Luis Raimundo (Rai, guitarrista e voz dos Keep Razor Sharp e The Poppers) sobe discretamente ao palco e acompanha Paulo Furtado na guitarra, “In the morning”. As botas pretas de Rai acompanham-no nos ritmos de dança que o fazem percorrer o palco, posicionando-se atrás de Furtado (um Tigre enraivecido!).
Sega regressa às baquetas com “Rancho Life” e em “Evil” Filipe Costa (dos Sean Riley & Slowriders) dirige-se para as teclas despercebidamente. Sega dá o arranque e quando a música já está a correr, Furtado pára de tocar e apresenta o teclista. Atitude que deixou o público agradavelmente surpreendido (foi bonito!). Rai despede-se do público e saí do palco. Reacção imediata da sala, logo ao primeiro acorde da guitarra de Furtado, “Wild Beast” (with a broken heart) primeiro single do último álbum de estúdio True (2014). As teclas evidenciam-se e por momentos tomam o comando da música, o saxofone toma o pulso à guitarra e a bateria arrasta o tema quase até à exaustão! “My heart safe at home”, registo originalmente mais calmo, seguido de um puro Rock n’ Roll a rasgar e a obrigar o público a acompanhar no refrão “Dance Craze”. De regresso a Femina, Furtado apresenta o tema a elogiar a mulher que lhe deu a voz, Maria de Medeiros, “These boots”. Rai regressa ao palco e Furtado diz que é a última música. E os 5 músicos rebentam literalmente com a ZDB, “21 St Century Rock n’ Roll”. Momento apoteótico, onde sentimos a cumplicidade dos músicos e onde cada um deu tudo o que tinha. Furtado salta para cima da bateria com o microfone “roubado” ao Rai (o dele estava preso no tripé), abre os pulmões até não conseguir mais e vai gritando “Rock n´Roll”, contagiando todos os que estavam naquela sala. O público com a adrenalina a furar a pele, não arredou pé e as luzes também não se acenderam. Um encore em que todos regressaram ao palco, enquanto Furtado confidencia que a música que iria tocar era uma das suas preferidas e ainda não tinha nome. No final, Sega agradece e diz que Tigerman iria terminar aquela noite como começou, one-man-band. E assim foi, Furtado sozinho em palco fecha com “True love will find you in the end” (Femina), com um percalço delicioso que faz disparar um “Foda-se” sumido. The Legendary Tigerman e os cavaleiros do asfalto estão cada vez mais apurados. Aguardemos pacientemente pelo próximo álbum que sairá (certamente) em 2017. E pelo próximo “Fuck the christmas”!
Texto – Carla Sancho
Fotografia – Luis Andrade