Bata branca, livro em V sobre a mão direita e óculos na ponta do nariz. O ar é grave. Passo ante passo contorna cada uma das mochilas, num corredor atafulhado, com a certeza que ao menor deslize a risada surda seria comum a cada um de nós. Nunca falhou. Talvez por isso, e passado algum tempo, o interesse deixou de estar numa mais que hipotética queda e começou a desviar-se para o livro que tínhamos em frente. Aos poucos entra-nos o Eça, o Camilo e sem titubear Alexandre Herculano e A Lenda da Dama do Pé-de-Cabra. Na altura, uns Black Sabbath ou Dead Can Dance fariam certamente parte de uma banda sonora imaginada entre as desventuras de D. Diogo Lopes. Talvez seja altura de reler o conto e actualizar a banda sonora. Talvez seja altura de ir ouvir Bruxas/Cobras, começar a subir ladeira acima à procura de remédio para maldição. Entre as batidas constantes de Ricardo Martins, na bateria, e o baixo em alta rotação de Pedro Lourenço encontramos as mezinhas, as poções mágicas para todas as maleitas de um ano aziago.
Tarde chuvosa aquela do primeiro dia de Abril de 2016. Exposição do Pedro Lourenço, “Montanha”, na Galeria Abysmo, entre a Bica e o Chiado, e que teve a particularidade de constituir o primeiro contacto com a duo lisboeta. Numa semicave minúscula, a convocar para uma certa clandestinidade, quase a pedir licença entre os trabalhos de ilustração do Pedro. Dois temas, conhecimento curto, mas que deixava antever uma intenção em explorar sonoridades não muito habituais. Passagens pelo Mucho Flow (Guimarães), apresentação no Damas, tema na compilação nos Novos Talentos Fnac e com a edição do primeiro trabalho em suporte físico prevista para Fevereiro/Março deste ano pela Revolve, editora a revelar um cuidado muito particular em dar a conhecer trabalhos de qualidade assinalável, não estivéssemos perante nomes como Joana Guerra, PAPAYA, Filho da Mãe & Ricardo Martins, para além do já mencionados Bruxas/Cobras. O concerto no Sabotage, o último de 2016, veio confirmar precisamente esta necessidade de exploração, alicerçada na bateria pungente do Ricardo, abrindo espaço para as linhas de baixo mais ou menos sincopadas, para a introdução de vocalizações do Pedro ou a manipulação sonora através da utilização de uma parafernália de pedais que lhe dão uma tonalidade mais agreste, abrasiva convocando-nos para um universo de feitiçaria e misticismo, como que tornando indissociável o nome do projecto à música que fazem. Outra das qualidades que se lhe podem apontar é a noção exacta do ponto em que se encontram e a partir daqui estruturarem o respectivo percurso. Ou seja, sabem o quanto ainda há para fazer, pelo que a duração do concerto, não mais que meia hora, é revelador desse conhecimento. 30 minutos bem agarrados, a prender a atenção, mas sobretudo a alimentar a curiosidade para níveis bem altos.
A abrir, o projecto de Iuri Landolt – Egbo. Aos mais ou menos atentos não têm faltado oportunidades para o ver, ora a solo ou fazendo-se acompanhar pelo Shela (LAmA) ou pelo Zé Quintino entre outros. É favor não convocar a razão quando se ouvem as linhas sobrepostas e entrecruzadas que vai lançando dos sintetizadores. Há uma dose de irracionalidade que deve permanecer. Tudo o que possa contribuir para ligação à terra não é bem vindo. Torna-se habitual associar a este género a ideia de viagem e exploração cósmica. Não querendo fugir às imagens mais ou menos gastas, acrescentamos que no caso de Egbo é necessário um processo de desmaterialização que convida a um afastamento dos melindres do quotidiano. O corpo e a mente vão, em forma de fumo, de feitiço, descosemo-nos, recompomo-nos como seguindo as indicações que cada ritmo nos vai apontando. No entanto, como qualquer viagem, o mínimo de paragens é sempre conveniente. Só por necessidade ou por muita falta de trocos é que se apanha o comboio dos tropas. Com Egbo as paragens entre temas tornaram-se apeadeiros desnecessários, e isso acabou por comprometer o prazer que já abocanhámos em doses majestáticas em concertos anteriores.
Texto – João Castro
Fotografia – Luis Sousa