A dupla formada por Ana Deus e Alexandre Soares – que ficou conhecida com o projeto Três Tristes Tigres – regressou em 2011 com a identidade de Osso Vaidoso e uma realidade menos pop, mais intimista e onde a palavra é quem mais ordena. Depois da estreia com Animal, foi preciso esperar cinco anos pelo seu sucessor, que viu finalmente a luz do dia no final de 2016 e batizado com o nome de Miopia. Considerado pela crítica como um dos grandes álbuns feitos em Portugal no ano passado, restava agora constatar de como ele iria resultar ao vivo. A primeira apresentação do novo registo em Lisboa deu-se em novembro passado no Bar Damas. Na última sexta-feira, dia 24 de fevereiro, ocorreu o regresso à capital, desta feita no Titanic Sur Mer.
A sala do Cais do Sodré apresentava-se bem composta nessa noite em que já cheirava a primavera. Também se destacou a média de idades dos presentes, ali entre os 40 e os 50 anos, notando-se que grande parte daquelas pessoas, ou até mesmo a totalidade, acompanham já há muito tempo o trabalho desenvolvido por estes dois “senhores” da música portuguesa, tanto individualmente como em conjunto. Também é de realçar o que o Titanic Sur Mer – inaugurado em finais de 2015 – trouxe de bom à música que por cá se faz, já que os nossos músicos encontram ali mais um palco com todas as condições para expor o seu trabalho. Comparado com o seu parente mais velho e infelizmente já desaparecido – estamos a falar do Maxime na Praça da Alegria – a sala do Cais do Sodré tem menos glamour e acaba por ser uma espécie de mistura entre cabaret e armazém, ou até mesmo oficina.
Para além dos dois membros dos Osso Vaidoso, marcou também presença em palco João Pedro Coimbra, um multi-instrumentista que tocou guitarra elétrica, bateria digital, lançou samples, etc., e que ajudou a que o som que nos chegava aos ouvidos fosse menos cru do que aquele que vem registado no disco.
Numa época em que os streaming das nossas vidas são dominados por música altamente previsível e onde domina a repetição da mesma fórmula até à exaustão, o que acaba por se destacar mais na atuação dos Osso Vaidoso é a forma como abordam um concerto, onde tudo acontece de forma nada previsível e totalmente espontânea. A set-list é definida ao longo do espetáculo, com algumas trocas de palavras entre Ana Deus e Alexandre Soares – reveladoras da enorme intimidade existente entre os dois – feitas, mesmo que inconscientemente, de forma a serem ouvidas pelo público presente. Nada é escondido e tudo é feito às claras – apesar da pouca iluminação existente dentro da sala – e até mesmo Alexandre Soares não se envergonha de afinar a sua guitarra com o som da mesma a sair para fora.
Ana Deus, que esteve praticamente todo o concerto sentada, comporta-se de forma irreverente, livre de quaisquer constrangimentos e em plena êxtase com o que está a fazer. Tem a postura que quer, diz o que lhe apetece e assume os erros com um enorme à vontade. Alexandre Soares vai dando pulsação e força às palavras ditas por Ana Deus, batendo com força na sua Fender Jaguar, que tanto é usada numa lógica mais rítmica, como também mais experimental, a fazer lembrar os primeiros tempos dos GNR. Mas são as palavras o ponto central do espetáculo, os outros instrumentos cumprem a missão de lhes acrescentar brilho e intensidade.
A lógica de concerto intimista esteve sempre presente durante a hora e pouco de espetáculo. Todos os que lá estavam mantiveram-se “ligados” até ao último segundo, havendo, inclusive, lugar a um encore na sequência dos muitos pedidos que vinham do público. Ana Deus continua a ter uma voz imaculada, estando em cima do palco não só para dizer palavras decoradas previamente, mas também para se envolver emocionalmente com elas. Cada palavra é dita com uma intensidade tal, que mais parece uma declaração de guerra… ou de amor. O lado instrumental ajuda-nos na construção de imagens e de paisagens associadas às letras. Miopia foi, como se previa, o álbum mais tocado, mas houve também lugar a um primeiro avanço do trabalho que andam a fazer com a obra de Mário Cesariny.
Ali entre o Tejo e o comboio da linha de Cascais, a dada altura Ana Deus olha para baixo, à procura de uma suposta set-list, e é surpreendida quando lê, numa folha colada à sua frente na monição de palco, o título “Life on Mars”, ao qual reage com espanto dizendo que aquela não era a set list deles. Pode não ser, mas este episódio é revelador da forma de estar em palco dos Osso Vaidoso.
Texto – João Catarino
Fotografia – Ana Pereira