Mariano Marovatto é escritor. Mariano Marovatto é cantor. Mariano Marovatto é compositor. Mariano Marovatto é aquilo que quiser ser pois faz por sê-lo. Nascido no primeiro de abril de 1982, no Rio de Janeiro, Mariano desde cedo que se tem afirmado como uma das vozes da sua geração, tanto a nível da escrita como da música. Conciliando estas duas carreiras, sempre intrinsecamente ligadas, o cantor tomou residência em Lisboa desde o ano passado, com Portugal a fazer parte da sua vida e da obra quando lançou o seu terceiro disco de canções, Selvagem. Este destaca-se pela peculiaridade de ser constituído exclusivamente por temas folclóricos brasileiros e portugueses que foram deixados de lado pela linha evolutiva e pela memória musical do grande público nos dois países.
De forma a entender melhor quem é Mariano Marovatto e de onde surgiu esta ideia de juntar duas culturas através de um violão – como ele amavelmente lhe chama – a Música em DX teve o prazer de passar um final de tarde com o cantor de forma a conhecer melhor este senhor que esconde por de trás de todas as belas palavras que prega.
Música em DX (MDX) – Para além de compositor és também escritor, sendo a poesia o teu campo de eleição. Se há algo que é apontado na tua música é a forma como consegues combinar estes dois conceitos. Como é que consegues conciliar a música com a poesia?
Mariano Marovatto: Como se diz no Brasil, “muda a chave”. Agora, estou um pouco mais focado na música por causa dos ensaios para os concertos do Selvagem. Desde os primórdios que a poesia e a música estão interligadas – a poesia veio da música e vice-versa – mas a questão de ambas estarem conciliadas ficou recentemente explícito com o caso do Bob Dylan, quando ele ganhou o Nobel da Literatura o ano passado. Acho que há, pelo menos no Brasil, inúmeros casos de pessoas que gostavam de fazer poesia mas que acabam por fazer música por desejarem abranger um público maior e, nesse sentido, a música tem muito mais potencial. Contudo, ser poeta coloca-nos num lugar mais “especial” do que um cantor: é visto como uma pessoa mais culta, inteligente ou sábia. Resumidamente, quando me tenho que concentrar num desses campos, muda-se o “chip”, mas nunca existindo aquele problema de se eu sou mais cantor ou mais escritor.
MDX – Nesse caso, poderias considerar-te como sendo “multitasking”?
MM: Sim, bastante, visto que exploro as duas coisas e ambas fazem parte da minha pessoa, é através delas que me exprimo. Não adianta investir mais tempo em apenas uma delas, porque a outra estará sempre lá presente.
MDX – Desde o ano passado que vives por Lisboa. Quais as principais diferenças que notaste entre a nossa cidade e o Rio de Janeiro?
MM: São duas cidades completamente diferentes; já dentro do Brasil que o Rio é uma cidade totalmente à parte, não me lembrando de nenhuma cidade em todo o mundo com a qual eu consiga estabelecer uma comparação. Costumo dizer que, sempre que se está lá, há alguma coisa a acontecer em algum lado: estamos perante uma cidade com seis milhões de habitantes. O Rio é uma cidade muito caótica, colorida, saturada e eufórica, enquanto Lisboa é o inverso de tudo isto: tal como a maioria das cidades do hemisfério norte, ela está apta para servir os seus habitantes – mesmo que os lisboetas reclamem dos sistemas de transportes, por exemplo – de uma maneira fácil e cómoda, tem uma imensa oferta de cultura. Acaba um pouco por ser uma enorme capital mas num tamanho pequeno e esta é uma das principais diferenças que eu reparo: o tempo por vezes parece que se expande.
MDX – Abordando o tópico da cultura, como é que Lisboa tem influenciado o teu processo criativo? Tanto para a escrita como para a música?
MM: Ao contrário do que acontecia com a literatura, só agora é que estou a conhecer a música portuguesa porque, enquanto o público português conhece imensos artistas brasileiros, nós não conhecemos praticamente nada do que é feito aqui. O nosso povo não costuma prestar muita atenção àquilo que é feito tanto em Portugal como na América Latina ou em Angola, por exemplo. Estou a descobrir coisas incríveis como Zeca Afonso, António Zambujo, Amália ou António Variações, que são músicos que grande parte dos artistas brasileiros sabem quem são mas ‘fogem’ aos olhos do público.
MDX – Portugal já está a ocupar um certo relevo na tua carreira enquanto artista, isto pegando no teu novo disco, o Selvagem. De onde surgiu a ideia de reunires temas folclóricos tanto brasileiros como portugueses?
MM: Ao trabalhar no meu disco anterior – Praia – dei-me de caras com um arquivo de nome Smithsonian Folkways que engloba inúmeros temas folclóricos dos Estados Unidos e lá encontrei bastantes discos brasileiros com músicas indígenas e folclóricas e até alguns portugueses, como os de Lopes Graça. Comecei a ouvir os seus discos, mesmo não sabendo nada da música folclórica portuguesa, e aquilo soou-me tudo muito familiar: a matriz portuguesa que vai para o Brasil, como as pessoas de Trás-os-Montes que migraram para o Rio de Janeiro, deixaram um pouco da sua marca através da cultura – quase todos os meus bisavós são oriundos de Portugal e é por isso que eu tenho cidadania portuguesa – e o Selvagem tem uma sonoridade muito mista entre os dois países, há muita conexão entre as cantigas e isso acabou por se tornar como uma descoberta entre a ligação existente entre os dois países.
MDX – Como trataste do processo de seleção dos temas, especialmente os portugueses, visto que não fazem parte da tua cultura principal?
MM: Eu tinha, no total, cerca de 100 canções que englobavam tanto o nordeste do Brasil e o norte de Portugal e aquelas que acabaram por ser escolhidas foram as que eu conseguia cantar melhor, as que se enquadravam no meu timbre e que eu percebesse bem a melodia. Curiosamente, os temas brasileiros são todos da zona da minha avó paterna (Pernambuco) e os portugueses, da dos meus bisavôs maternos. Apesar de muitos terem sido os temas que ficaram de fora, aqueles que permaneceram funcionam num tudo e quase de uma forma orgânica, culminando num disco pequeno de forma propositada – não quis colocar temas cujas arestas ainda não estivessem bem limadas.
MDX – Em “Lá Cima Ao Castelo”, a tua voz adota um sotaque semelhante ao português. Foi estranho teres cantado num dialeto que não é o teu original?
MM: Se eu não cantasse em português, a música não rimaria. De qualquer das formas, não achei que cantar em português fosse assim particularmente difícil, embora confesse que ainda me soe um pouco estranho por não estar acostumado a dizer verbos que acabem em “er”.
MDX – Se formos a comparar Aquele Amor Nem se Fala e Praia e Praia, é notório uma revolução na tua sonoridade. Como é que de um disco tão experimental como o teu anterior passaste para este que tem um registo mais direcionado para o folk?
MM: O registo folclórico do Selvagem funciona porque eu queria demonstrar o cerne de cada canção no disco, mas ao mesmo tempo não podia copiar os temas na íntegra – seria quase uma falta de respeito – e por isso tentei utilizar uma abordagem mais simples para que as canções fossem entendidas e sentidas. Em vez de criar um álbum revolucionário, onde eu metesse muitos elementos eletrónicos só porque sim, acabei por agarrar só numa guitarra semiacústica e construir um disco livre de efeitos e nu, e o resultado final ficou um pouco estranho porque ficou um folk meio para o obscuro, visto que a versão original das canções eram quase todas a capella. Na questão das sonoridades, acho que a repetição não é uma coisa muito interessante e apelativa.
MDX – Poderias dizer que, nesse caso, enquanto escritor, consegues evitar essas repetições? Visto que um escritor tenta sempre abordar novos temas sempre que escreve alguma obra.
MM: Pode-se dizer que sim, porque isso faz com que eu tenha uma mente mais aberta para encarar o fator ‘mudança’ nos meus discos. De certa forma, posso até confessar que prefiro os meus discos aos meus livros porque me oferecem mais liberdade, são produtos mais livres e desimpedidos de qualquer preconceito que eu tenha. Outra aspeto onde se distingue dos livros é que a primeira pessoa que tem que gostar da minha música sou eu: se eu gostar, então para mim está bom. Não gosto de me sentir preso para com a forma como os meus discos passados foram feitos e a receção que eles tiveram, gosto de inovar mas manter-me fiel a mim próprio.
MDX – Consideras que compor música pode funcionar como uma espécie de ‘refúgio’, um porto de abrigo, para quando estás a ter dificuldades em avançar com a tua escrita?
MM: Sim, completamente. Num dia, estou a tocar guitarra e no outro estou a escrever qualquer coisa, depois, quando me canso, troco o que estou a fazer portanto sim, acho mesmo que funciona como um refúgio. Nesse aspeto, acho que ambos alimentam-se na medida em se complementam visto que as ideias de um pode passar para o outro.
MDX – No dia 17 deste mês vais dar um concerto na Casa Independente. Poderias levantar um pouco o véu sobre aquilo que irá acontecer nessa sexta-feira? Se Selvagem será a ênfase da noite ou se os teus discos passados também vão ser conjugados de igual peso.
MM: O concerto será focado no conceito do Selvagem – músicas folclóricas – assim como de algumas músicas que não entraram no disco e outras que não são minhas; todo o repertório do concerto será de temas que não são de minha autoria, o que tanto faz com que haja liberdade da minha parte assim como responsabilidade. Serão músicas portuguesas e brasileiras que estejam englobadas no Selvagem, por exemplo, irei interpretar um tema do Gilberto Gil que acho que está englobado no ambiente do disco – Gilberto Gil ouvia Luiz Gonzaga, que conheceu o Lampião, a personagem do tema da primeira música. O disco foi feito para ser escutado muito em casa num ambiente solitário, quase como de um livro se tratasse, mas quando subo a palco tenho o dever de o tornar em algo coletivo. Por ser a minha primeira apresentação do álbum em solo português, considero que também tenho que trazer a minha bagagem cultural através das canções, por isso, acho que vai ser um concerto mais animado e extrovertido do que o disco em si.
MDX – Atualmente, quais as perspetivas que tens para o futuro?
MM: Para já, tenho agendada uma digressão deste disco por Portugal e quem sabe pela Europa. Estou entusiasmado pelo concerto aqui em Lisboa também para ver como é que o conceito do mesmo irá resultar em palco. Depois, quero escrever um disco cá e já tenho algumas canções que provavelmente o irão integrar, sendo este todo composto por temas originais. Será um disco totalmente Made In Portugal.
MDX – Com uma música chamada “Lisboa”, esperemos…
MM: Olha, quem sabe… seria mais uma para se juntar às vinte que já existem, não? (risos)
Recordamos que Mariano Marovatto irá apresentar na próxima 6ªfeira dia 17 Março na Casa Independente o seu último trabalho entitulado de “Selvagem”, é sem qualquer questão uma sugestão Música em DX.
Entrevista – Nuno Fernandes
Fotografia – Luis Sousa