Os Russian Circles não sabem o que é que “abusar da sorte” quer dizer e ainda bem. Naquela que foi a sua quinta vinda num espaço de sete anos a Lisboa, o trio não só não sofreu os efeitos da sobre-exposição que podiam ameaçar o seu regresso, como fê-lo num RCA lotado. Enquanto muitos rumaram para Alcântara para abanar as ancas, a sala de Alvalade foi preenchida por gente cuja ideia duma noite idílica de sexta-feira é rebentar o pescoço ao som de ritmos sísmicos e riffs gigantes. Guidance, o seu sexto LP, foi o mote para a paragem nestas bandas, naquela que foi mais uma prestação irrepreensível do conjunto de Chicago, mas não sem antes lidarmos com um par de concertos desequilibrado.
O que é que tem quatro pernas e é uma perda de tempo? A pergunta induz a uma série de resposta de mau gosto, por isso saltemos essa etapa e diremos que são os Putan Club, que infelizmente tocaram até depois da hora. O duo apresentou-se enquanto banda surpresa no cartaz e tomou essa oportunidade para nos presentear com uma mixórdia composta por uma parede de som de guitarra e baixo distorcidos, martelados por batidas programadas com ritmos do Doom ao Techno pastilhado. Saúda-se a ética de trabalho anti-sistema de François R. Cambuzat e Gianna Greco, que dão concertos por todo o globo numa lógica DIY, e a sua postura de confronto ao tocar no meio do público, mas isso não chega. Quando é preciso justificar toda a encenação com um discurso interminável e para lá de pretensioso, recorremos à sempre fiel sabedoria popular para dizer que foi “muita parra e pouca uva”.
Face a este começo em falso, tudo dependia dos Cloakroom para dar uma guinada na direcção certa. A missão foi cumprida… em parte, porque o seu melaço sónico primou mais pela contemplação que pela contundência. Expliquemos. O trio prima por uma abordagem diferente ao shoegaze, empestando-o de psicadelismo com o seu quê de stoner, fórmula bem patente na entrada polvilhada de apontamentos gloriosos de guitarra em Paperweight. O resultado é daquelas sessões em que o peso não oprime, mas sim envolve o ouvinte para uma jornada cambaleante. Não tendo sido propriamente uma actuação arrebatadora, o grupo liderado por Doyle Martin preparou bem o caminho para os Russian Circles e, arriscando-se a receber brownie points da comunidade melómana mais atenta, findou o seu concerto com Farewell Transmission, cover de Songs: Ohia (do saudoso Jason Molina).
Dada a lotação esgotada da sala, não é que o público precisasse sequer de aquecimento para receber calorosamente os Russian Circles. Nem a banda se cansa de vir a Lisboa, nem a cidade se farta deles, tanto que essa enfatuação até está representada na canção que compuseram neste último álbum (e que, lamentavelmente, não foi tocada – o potencial de likes nas redes sociais foi defraudado). De Guidance trouxeram outras canções, e foi justamente com o combo Asa/Vorel que deram início à festa. Se a primeira é um exemplo refinado da melancolia ponderativa que os Russian Circles conseguem conjurar, a segunda, não sendo exactamente o seu reverso pois a atenção à beleza continua lá, puxa por aquela intensidade que nós faz sempre indagar se aquilo é metal, se é rock. Na verdade não interessa, os rótulos de nada servem quando somos submetidos à estragação nas cervicais provocada por aquele triunvirato de bateria animalesca, baixo gordíssimo e guitarra desdobrada entre a melodia cinemática e o riff impiedoso.
Uma banda que baseia a sua composição na profusão de pormenores sonoros arrisca-se sempre a soar pior quando tenta transpor essa riqueza ao vivo, e é isso que é extraordinário nos Russian Circles. Três gajos em palco conseguem não só fazer soar as suas músicas com a exuberância de estúdio, como têm o condão de torná-las ainda mais grandiosas. Tanto temas novos como Mota e Afrika (este a relembrar que o tremolo não é propriedade exclusiva do Black Metal), como malhas de um passado mais recente (a brutal Deficit), ou mais antigo (aquele tapping arrepiante de Harper Lewis), ganharam uma dimensão acrescida no palco, algo que também se deveu à qualidade de som fenomenal da casa. Nesse sentido, por mais que as suas composições nos apelem à escuta atenta com um par de headphones, os Russian Circles devem ser mesmo apreciados ao vivo. Para que dúvidas não restem para abalar esta tese aqui proposta, basta dizer que Mlàdek e Youngblood, a terminar (quer com o concerto, quer com a nossa saúde), valeriam por si mesmas o preço do bilhete. Que venham as vezes que quiserem, a gente continua a receber-vos.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Luís Flôres | Altamont
Promotor – Amplificasom