A noite de 12 de abril chegou para provar que não existe só um Ryley Walker, mas sim dois ou três. Todos eles se juntam para um concerto memorável.
Há uns bons anos atrás, Jerry Seinfeld, num programa especial da HBO em sua honra, indagava-se porque é que as pessoas vivem tão fascinadas com os actores, quando estes não fazem mais do que brincar às imitações e decorar falas. É óbvio que o senhor estava a ser jocoso, mas essa piadola ao menos serve para, através da sua simplificação cáustica, nos recordar que o actor é, antes de mais, uma pessoa, e que não detém o monopólio do fingimento (no sentido pessoano da coisa), pois músico também o faz. Por um lado há toda uma concepção teatral e pantomímica que artistas com Bowie e Prince popularizaram nas personagens que criaram, mas por outro há todo um desdobrar que ocorre em palco com determinados artistas, muitas vezes involuntário, na forma como se apresentam e como cantam. É assim o caso de Ryley Walker.
O cantautor americano apresentou-se pela primeira vez em Portugal no espaço intimista da ZDB com um concerto largamente baseado em Golden Sings That Have Been Sung, o seu álbum de 2016 que o mantém como figura a seguir com atenção nas lides do Indie Folk. Uma audição prévia antes de nos dirigirmos para o Bairro Alto pintaria o músico de Chicago, à partida, como uma figura algo sofrida, trágica, a lembrar a melancolia inglesa dum Nick Drake, mas não foi bem isso o que Walker nos apresentou. Em vez dum perfil macambuzio, o cantor mostrou um sentido de humor algures entre a acidez autorreflexiva dum Josh T. Pearson e a personalidade de palhacinho adorável (e, nesse caso, por vezes a roçar o insuportável) de Mac deMarco. A sua postura em palco pautou-se por uma extroversão desarmante e uma capacidade incrível de metralhar piadas certeiras e a responder às chalaças dum público cada vez mais confortável em interagir.
Esta análise, que nada tem a ver com música, seria escusada, não fosse este um elemento fundamental para todo o espectáculo. É que entre humor auto-depreciativo, histórias de colegas de casa pedrados, elogios a Portugal (e à sua cerveja) e reflexões sobre o estado de insanidade dos nossos taxistas, Walker foi largando a alma em temas como Sullen Mind (coisa que ele não é, ou não parece ser)) ou The Roundabout com um esgar de quase dor enquanto cantava com a voz em esforço, de olhos em permanente semicerrar. Esta dissonância agridoce, entre a boa-disposição e o fechamento torturado, não causou estranheza ou distanciamento no público, antes pelo contrário, aproximou-o. É como se sentíssemos ser-nos permitida a entrada num espaço íntimo e que entre músicas, o visado nos assegurasse que estava tudo bem, que podíamos estar ali.
O impacto da música de Walker deveu-se também à forma como ele a transmutou para um cenário ao vivo. Em formato trio, com Ryan Jewell na bateria e o norueguês Julius Lind no baixo, o músico de Chicago optou pela visceralidade ao invés da riqueza de arranjos que o seu output discográfico demonstra. Não quer isto dizer que Walker tenha simplificado as suas composições, mas sim que tenha aliado o seu talento virtuoso (aliás, evidenciado num primeiro concerto de Freejazz desconcertante, com Gabriel Ferrandini, Rafael Toral, e Pedro Sousa – ao qual não dedicaremos grandes linhas por manifesta incapacidade deste redactor em analisá-lo) a uma abordagem mais despojada. Tomemos The Halfwit in Me, por exemplo, usada para a abertura do espectáculo. Sem a profusão de cordas, as teclas ou até mesmo os sopros que o perfumam, este tema foi tocado com muito mais intensidade, em que Jewell serviu um ritmo acelerado, quase Jazz, sem no entanto distrair da melodia central que Walker ia soltando em dedilhados. O mesmo se pode dizer de Funny Thing She Said, aquele tipo de baladão pesaroso guiado pelo piano (e a garrafa de Whiskey em cima do mesmo), aqui com direito a uma longa introdução e a uma entrega de coração na boca (tanto que as palavras até saíram meio comidas).
Entre a placidez britânica de Primrose Green, a inspiração mais americana (em itálico) de On The Banks Of The Old Kishwaukee ou a explosão em tremolos de Sullen Mind, passou-se uma hora a correr e males foram espantados naquela sala. Ainda antes de sair de palco, Walker brindar-nos-ia com uma magnífica versão de Fair Play, original de Van Morrison (o que proporcionaria um dos mais hilariantes momentos da noite, quando disse ia tocar a Brown-Eyed Girl e se pôs a trautear a música aos berros). Como já tinha o público na mão, a pedir-lhe para voltar para o palco, e a noite ganha, Ryley Walker ainda fez um encore de duas músicas apenas acompanhado de guitarra e numa delas até se deu ao luxo de parar a meio e recomeçar para afinar a guitarra. Perdoámos-lhe a afronta, já que de seguida terminou com If I Were A Carpenter, clássico americano de Tim Hardin que por si só já teria valido a pena o preço do ingresso. Aguardamos agora pelo seu regresso, em formato musical ou stand-up comedy, qualquer um deles vale a pena.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Luis Sousa