Por vezes, há certos momentos em que “menos é mais”, em que a simplicidade prevalece sobre a complexidade. No passado dia 29 de Abril, Afonso Rodrigues (Sean Riley & The Slowriders, Keep Razors Sharp) e Steve Gunn levaram o dito ditado à letra ao conseguirem preencher o palco do MusicBox com apenas uma guitarra em punho, dispensando a decoração de baterias, amplificadores ou sintetizadores que já há muito são vistos como utensílios de aprumo e decoro na sala de concertos do Cais do Sodré.
Numa noite onde o conceito ‘intimista’ seria o dresscode obrigatório, ninguém quis perder pitada das surpresas que aquele sábado traria consigo, registando-se uma enchente considerável ainda antes de Afonso Rodrigues subir a palco, mas foi apenas quando o artista português ocupou o seu lugar em frente ao microfone que o bar do MusicBox deixou de ser o local mais concorrido da sala – não antes de o artista pedir a um funcionário da casa que tivesse a amabilidade de lhe trazer uma imperial bem fresca, ou não fosse o calor daquela noite exigir a tal.
Há em Afonso um brilho que primeiro cativa e depois prende-nos: se já era difícil não ficar apaixonado com o seu look anos 50 cheio de pinta, então torna-se impossível não cair de amores pela rouquidão enfeitiçante que paira sobre o seu timbre, que ao fazer-se acompanhar por apenas uma guitarra, solta toda a sua magia. Para uma ocasião especial como a de aquela noite, a faceta mais acústica do frontman dos Sean Riley & The Slowriders foi, naturalmente, aquela que sobressaiu ao de cima, estando representada através de versões mais simplistas de alguns dos temas da sua banda, ou, como o próprio disse, “esta noite servirá para apresentar algumas músicas que são pouco tocadas ao vivo”, antes de apresentar “16 Days”, a primeira da noite.
Durante cerca de meia hora de duração, Afonso embalou os presentes com variados temas ao mesmo tempo que revelava a história de como é que alguns acabaram por surgir, como no caso da sua viagem até Los Angeles que acabou por dar asas ao tema “L.A.”, tema composto precisamente na cidade da Califórnia onde a banda se encontrava em gravações para um dos discos de Sean Riley & The Slowriders. Entre temas inéditos, como “Keep Me Up From Bed”, houve ainda tempo para um ou outro êxito, com “Sweet Little Mary” a sobressair pela forma como não perdeu nada do seu encanto mesmo despida de todos os instrumentos que a acompanham desde 2011. De forma sucinta, para além de ter oferecido a possibilidade de dar a conhecer versões mais ‘puras’ de algumas das suas canções, Afonso Rodrigues mostrou ser um artista capaz de preencher um palco só por isso, não precisando de terceiros para ajudá-lo a levar a cabo concertos capazes como sempre nos habituou, mas isso já há muito que se sabia. Entre palavras de apreço, despediu-se – com a mesma imperial na mão – com um sorriso tímido na face e a revelar que também ele próprio estava desejoso por o concerto que se seguia: Steve Gunn.
Ainda nem o seu concerto tinha começado e já dava para perceber que Steve Gunn, em boa gíria portuguesa, era um tipo à maneira: foi o próprio que fez o seu soundcheck, distribuindo sorrisos e hidratando-se ao sabor de um copo cheio de vinho branco, tudo enquanto mirava com um olhar apaixonado para as suas duas guitarras. Em cerca de dez anos de carreira, Steve já deixou a sua marca em catorze álbuns diferentes, sendo oito de sua autoria e os restantes a tratarem-se de participações – como Cantos de Lisboa, com Mike Copper – mas foi em prol do mais recente, Eyes On The Lines, que Steve se apresentou no MusicBox, assim como tinha feito em Paredes de Coura e na ZdB, em 2015 e 2016, respetivamente. Com a sala um pouco mais composta e as luzes já apagadas, o americano oriundo de Brooklyn volta a subir ao palco – com o copo de vinho a meio – e num enferrujado português, saúda o público com um “tudo bem?”, dando de seguida a palavra para uma das suas fiéis guitarras.
A partir do momento em que Steve Gunn se solta por entre cordas, a sua simpatia envolvente dá lugar a uma concentração total, como se o destino do planeta estivesse dependente das notas que ele se prepara para soltar e acreditem, são mesmo muitas: o americano domina por completo a técnica do dedilhado, havendo alturas em que é possível ver até quatro dedos a colidirem em diferentes cordas. Há uma relação simbiótica entre Steve e as suas guitarras, uma paixão inexplicável expressa através de múltiplos sons com as quais o artista demonstra que tanto homem como guitarra podem entrar num estado de ressonância de alma; Steve é a guitarra e a guitarra é Steve, e no espaço de uma hora de concerto, nem se imaginaria como seria um sem o outro.
Para todos aqueles que se denominam como sendo bons sabedores das proezas de Steve Gunn, o artista gosta de incorporar toda a sua criatividade nas suas atuações ao vivo, improvisando muito dos seus temas conforme o seu estado de espírito – mas quem é que gosta de relações monótonas? – proporcionando sempre uma sensação de frescura e de novidade. Contudo, esta sua veia artística tem em consideração não desencadear revoluções desnecessárias na pureza das canções de Steve mas sim enquadrar todos os temas que levou a palco na vertente mais melancólica do seu recente disco. Com isto dito, não seria descabido em afirmar que a guitarra de Steve Gunn, se fosse personificada num ser humano, estaria a desabafar todas as suas adversidades e problemas enquanto lágrimas caíam-lhe pela face, comovendo e desencadeando compaixão em todas as almas que residiam no MusicBox.
De facto, o próprio alinhamento assemelhava-se a uma história de amor não correspondida e destinada a um final trágico: “Old Strange”, “Night Wander”, a aplaudida “Water Wheel” ou “Way Out Weather” foram alguns exemplos da recriação do fatídico destino da ‘guitarra’ de Steve Gunn. Apesar do artista conseguir impulsionar a melancolia dos seus temas através do desgaste no seu timbre, que se enquadra que nem uma luva na melancolia que a sua guitarra prega, é mesmo o instrumento das seis cordas que ocupa as luzes da ribalta, deambulando entre notas a uma velocidade alucinante como se de uma bailarina a interpretar uma coreografia de forma irrefutável, sem qualquer erro ou falha. Para o fim, estava reservado uma “Mr. Franklin”, escolha adequada, visto que se trata de um tema algo mais leve e, apesar de não ter quebrado totalmente o tom sombrio do concerto, mostrou uma faceta mais refrescante – facto irónico, visto que o artista tinha reclamado do barulho do ar condicionado do MusicBox momentos antes.
Afonso Rodrigues e Steve Gunn, dois homens distintos, conseguiram provar que independentemente das origens, do registo, da língua e até no gosto por bebidas alcoólicas, a linguagem de uma guitarra é universal. Fazendo-se acompanhar apenas pelas suas fiéis companheiras de seis cordas, cada músico conseguiu preencher o palco e fazer-se ouvir pela sala como se de orquestras sinfónicas se tratassem, comprovando, definitivamente, que o “menos também pode ser mais”, ou não fosse este um mero exemplo do poder da música.
Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Ana Pereira