Uma cadeira ao lado de uma mesa de apoio redonda, um cadeeiro bonito que iluminava timidamente o repouso da campaniça. Um recorte de lâmpadas de camarim desenhavam o espaço onde se iriam exibir as curtas-metragens de “Longe do Chão”, o recente trabalho discográfico d’ “O Gajo”, projecto de João Morais.
Sob um foco vermelho de luz, João Morais sentou-se e seguido de um “vamos a isto” tocou a viola com um arco de violino. Pousou uma viola e trocou-a por uma outra aparentemente igual, “para quem não conhece, esta é a “gaja” a viola campaniça”, apresentou-nos. “Há festa aqui ao lado” abriu a sessão. Arrufes e gargalhadas nas saias rodadas na ponta das botas subidas, mãos abusadoras que roçam as ancas estreitas das belas mulheres. Uma caneca que desliza no balcão de madeira, mais um brinde atordoado do ciúme, mais um beijo roubado à juventude.
“Um pouco de chuva”, para contrariar as previsões do tempo quente que se fazia sentir naquela noite. O cheiro da terra molhada, num ocre lamacento dos ritmos. As cordas intercalavam entre repetições abertas e os acordes fechados do céu cinzento. Uma lenga-lenga chuvosa, um refrão mais rockeiro.
Uma música que dedica “ao nosso lado imaterial, à nossa alma ou às nossa almas, depende de quantas almas temos.” Primeiros acordes a fazerem lembrar ligeiramente as baladas de Metallica, regados a escrutínios poéticos ao longo da melodia. As inquietações de Fernando Pessoa e lá muito ao longe, o sofrimento baixinho do Zeca, “Quantas almas tenho”.
João Morais partilhou o quanto doloroso foi compor este disco, disse mesmo que foi “tirado a ferros”, pois o barulho e a distorção têm-no acompanhado ao longo da vida (vocalista e guitarrista de Gazua). E não é para menos, 10 cordas alinhadas exigem rapidez e sincronização, não é para todas as falanges.
Em tom de declamação remata com a frase, “Rumo em direcção ao sul para espalhar a boa-nova.” Ouvia-se o som das ondas a rebentarem na costa. As cordas da viola começaram a contar feitos gloriosos, das conquistas de ilhéus repletos de unicórnios e bruxas gigantes. De navios piratas com arcas ofuscadas de luz dourada, em arco-íris de diamantes. Ventos agitados que dobravam os remos e rasgavam as velas, mas que mesmo assim conseguiam chegar à terra firme e prometida, “O navio dos Loucos”. “Nós somos os loucos e hoje o Teatro A Barraca é o nosso navio”, remata João Morais no final do tema.
Como se caminhássemos nas ruas da baixa do Porto, perseguidos pelo sopro do lusco fosco. Descêssemos a Rua das Flores e parasse-mos em frente a um homem sentado num banco. Admiraríamos o articular preciso dos dedos, que empurrava as vertebras e endireitavam-nas em cada estalar de corda. O homem olharia em frente, no vazio do escuro que se ia aproximando, “O cego e a guitarra”.
“Esta música chama-se, Trânsito de Vénus. Acontece quando vénus passa entre a Terra e o Sol e se alinha. Obrigado Telma, a deusa”, partilhou João. No sopro do cosmos, os acordes subiram um tom e deslizaram na força do cântico da deusa. Seguiram uma sequência agitada (na rota do Sol), entraram depois num ritmo melódico compassado (da Terra) e alinharam-se finalmente, numa espécie de luz harmoniosa. Quase sem folgo, João fez uma pausa e agradeceu ao Pedro Vindeirinho da Rastilho, à Barraca e ao João (técnico de som).
“Uma ginja com elas, a melhor medicação para um dia de frio.” João conta-nos que tocou numa aldeia perto da Serra da Estrêla, e quando disse o nome da música, Ginja com Elas, trouxeram-lhe um garrafão. Este foi um dos vários momentos de humor e boa disposição d’ O Gajo ao longo da noite. Delicadamente fez os acordes subirem, para de seguida entrarem num choro miudinho. Mas, rapidamente esse choro se redimiu ao empolgar da campaniça, que fez uma festa até ao final do tema.
Quase a entrar na última parte do concerto, João diz-nos que a música seguinte é sobre o “Miradouro do Adamastor, a que eu chamo Miradouro da Batucada porque está sempre alguma coisa a acontecer”. Conversas, falatório e gargalhadas que foram aparecendo nos ritmos, acompanhadas com um chocalho no pé. A música termina com o barulho de vozes do Miradouro da Batucada.
“A D. Joaquina Gonçalves tem 82 anos, e é conhecida por ser a mais velha carteirista de Portugal (risos). Foi apanhada no verão, o que significa que ainda continua a trabalhar, há que respeitar isso. Esta vai para a Quina, porque é mais conhecida por Quina.” Seguiu o tema “A Carteirista”, em ritmos de quase de desenho animado em que a Quina com um palito na boca aprimorou a subtileza de fazer desaparecer carteiras das malas dos turistas, no Eléctrico 28.
A última música da noite e também a do álbum, “ A Navalha da Rua Escura” estava prestes a ser ouvida, “Não tenho muitas mais para tocar”, sorriu João Morais. “A Navalha da Rua Escura foi quando percebi que há navalhas na rua escura (risos). Foi numa rua escura que conheci uma navalha.” O pé esquerdo marcava o compasso da bateria enquanto o apito da polícia se fazia ouvir. Vimos as ruelas com candeeiros de luz sumida, ouvimos os passos da navalha a perseguirem-nos nas escadas. Um sufoco pendurado entre a adrenalina e o medo gélido. Um apito fez-se soar e uma luz azul de um carro viu-se ao fundo da rua. Afinal O Gajo ainda trazia mais uma magnífica curta para o encore, “5 Tons de Negro” (não faz parte do álbum).
“Longe do Chão” é uma encadernação de contos mágicos e reais, dolorosos e enternecidos. São os apaixonantes múltiplos ritmos da viola campaniça, entrançados no emaranhado das 10 cordas. João Morais demonstra uma enorme versatilidade nas composições, conseguindo surpreender em cada faixa. Uma noite quente com 11 músicas de coração cheio e de transbordo de alma. Sabe tão bem um álbum assim.
Texto – Carla Sancho
Fotografia – Ana Pereira