Todos os anos, a meio de Maio, a Serenata Monumental da Queima das Fitas de Coimbra acolhe centenas de estudantes, que envergam as cores pretas do traje académico, no Largo da Sé Velha. Começando sempre, de forma imperial, à meia-noite, toda a mancha negra que ali se reúne entra num estado de silêncio absoluto, interrompido apenas pelo som das cordas de guitarras portuguesas que acompanham os solistas que pregam sobre a cidade de Coimbra, os tumultos da vida de um estudante ou a fatídica reminiscência para com a ‘capa negra de saudade’. Para muitos, este é o momento mais emotivo do ano, havendo sentimentos de melancolia e de realização pessoal a pairarem pelo ar.
A primeira Serenata Monumental que se presencia enquanto estudante nunca se esquece, chegando mesmo, para alguns, a ser inigualável. Todavia e isto partindo de um estudante universitário que já teve o prazer de experienciar duas, a sensação de magnificência e de beleza sem precedentes, que nunca pensei ter o luxo de viver novamente fora do ambiente de uma serenata, tomaram residência total no meu coração quando, no dia 9 de Junho, tive a fortuna de ver Bon Iver em palco, naquilo que poderia descrever como uma experiência avassaladora que modificou, radicalmente, todo o meu pensamento cognitivo e a minha forma de ver o mundo; “segredos de um concerto, que levo comigo para a vida”.
O relógio alcançara o marco das nove e meia da noite, hora de ponta nas muitas barracas de restauração do NOS Primavera Sound e, apesar se aquele ter sido o dia mais lotado de toda a história do festival, a afluência aos hambúrgueres, kebabs e sandes do costume, peritas em matar o bucho, não se destacavam tanto como seria de esperado; mesmo com Teenage Fanclub e Nikki Lane a tocarem para modestos aglomerados de festivaleiros, a maior massa de público já fazia questão de marcar lugar em frente ao palco NOS para presenciar aquele que era, sem sombra de dúvidas, o nome mais chamativo de todo o cartaz deste ano.
Com o nervosismo e ansiedade a tomar conta dos corpos, quinze minutos antes do início do concerto e notou-se um enorme arrastão de multidão para a dianteira do palco, com muitos a deixarem o seu local de repouso no solo – houve quem estivesse a marcar lugar desde as três da tarde – para ocuparem todo o vácuo de espaço que existia por ali, prenúncio de uma entrega total que Justin Vernon e a sua leal trupe iriam encontrar no público português.
Quando finalmente esta mente brilhante que catapultou Bon Iver para a ribalta e os tornou como uma das experiências musicais mais belas que marcam o panorama musical da atualidade entrou em palco, foi recebido com grande euforia e uma calorosa chuva de palmas, acolhendo a banda que não pisava solo português desde 2012. No instante em que os primeiros acordes de “22 (Over Soon)” começaram a ecoar pelo Parque da Cidade, um silêncio assombroso tomou conta da multidão, deixando-se enfeitiçar pelas palavras de Justin Vernon.
Em 22, A Million, a banda oriunda de Wisconsin reinventou-se por completo, apresentando um registo eletrónico, com o seu quê de experimental, fugindo às raízes indie folk que tanto nos fizeram perder de amores por Bom Iver, todavia, o encanto existente na sonoridade do grupo manteve-se inalterável com o passar dos anos, levando-nos agora em viagens sem paralelos por mundos nunca antes explorados. Foi dentro desta vertente proveniente do uso das tecnologias que rodou grande parte do concerto da banda, com o novo disco a ser quase todo ele tocado na íntegra, ganhando ainda mais intensidade e beleza quando passado para palco.
A Justin Vernon sempre lhe foi atribuída a bênção de colocar sentimento e emoção em todas as palavras que canta, independentemente do tema em questão. Logo ao início, esta faceta do cantautor foi demonstrada através de uma irrepreensível “715 (Creeks)” – de lamentar as sonoridades elevadas vindas do palco Ponto, através de Swans – e uma magistral “33 ‘God’”, ambas logo no início do concerto e a prender completamente uma plateia que se destacava pelo imenso respeito demonstrado face à banda, com as típicas conversas de café a ficarem adiadas para outra altura e trauteios a substituírem cantorias desafinadas, mantendo a pureza das palavras de Vernon intactas.
A carismática capa de 22, A Million contém dezenas de símbolos encriptados a servir de decoração. Ao longo do concerto, mais concretamente todas as músicas que pertencem ao aclamado terceiro disco da banda, muitos foram esses desenhos icónicos que iam sendo transmitidos na tela que servia de fundo de palco, acompanhadas por impressionante sistema de luzes, tanto vindo de cima como debaixo – estes últimos assemelhavam-se a candeeiros – para proporcionar uma experiência a nível visual do outro mundo, nada aconselhável a quem sofresse de epilepsia. Por mais visivelmente atraente que o jogo de luzes e de vídeo que os Bon Iver traziam na bagagem fosse, este tinha um propósito: entrar dentro da estética de cada canção e tentar representar as mensagens subliminares que a mente brilhante de Justin Vernon incorporara em cada uma. A enfeitiçante “21 (Moon Water)” e a saborosa melancolia de “8 (Circle)” foram aquelas que maior uso deram a esta benesse.
Tal como na Serenata Monumental de Coimbra, o silêncio e a emoção tomam conta do público, havendo vestígios de sorrisos sinceros de felicidade e até de algumas lágrimas de emoção. Rendido à paixão que o NOS Primavera Sound demonstrava face à banda, Justin Vernon elogia a plateia a cidade, dizendo que “esta é a cidade mais bonita do mundo. O Primavera (Sound) é sem dúvida um dos melhores festivais que por aí andam. Obrigado por estarem aqui”, o que, ao contrário do marcante evento para a comunidade estudantil, arrancou ruidosas palmas e upos de apreço.
Recuando atrás no tempo e juntando-se à sua fiel guitarra acústica que o acompanharam ao longo de tantas aventuras, Justin Vernon sai um pouco da rota eletrónica que o concerto se direcionava por para resgatar alguns dos temas mais genuínos que marcaram uma carreira que celebra, em 2017, dez anos de existência: “Perth”, “Towers”, “Beach Baby” ou “Minnesota, WI” – novamente perturbadas pelo som intensivo de Swans, o que levou o próprio Justin a gracejar que era “bom saber qual o tom em que estão a tocar” – levaram a que uns quantos telemóveis surgissem no ar para captar o momento, ao mesmo tempo que faziam as delícias dos casais que faziam juras de amor ao som de temas que, muito provavelmente, estariam associados a momentos X e Y das suas relações; afinal, quem nunca ouviu Bon Iver enquanto terapia para apaixonados incuráveis?
Já com uma hora de concerto atingida, o tempo para os encantos proporcionados de Bon Iver estavam rapidamente a escassear, mas houve ainda tempo para uma “Holocene” onde Justin Vernon agoira que “I was not magnificent”, embora toda aquela noite apontasse que a sua genialidade fosse exatamente o contrário, tal como o quinteto de sopros que acompanhava a banda nesta tournée. Para terminar a noite, apareceu o primeiro vestígio do muito amado primeiro disco For Emma, Forever Ago, através uma encantadora “Creature Fear” que, passados tantos anos, consegue ainda causa o mesmo impacto emocional.
Como manda a tradição académica, a Serenta Monumental deve ser selada com o hino académico, único momento do evento que junta todos os estudantes e onde lhes é finalmente permitido libertar todo o acumular de manifestações emocionais que uma serenata acata. Dominada como ‘aquela’, Bon Iver têm uma canção que consegue unir todos os pulmões do NOS Primavera Sound em uníssono, como se de um ‘efe-erre-á’ se tratasse; falamos nada mais, nada menos do “Skinny Love”, o previsível encore que levou à maior comunhão entre o público e uma banda em todo o festival, com a balada a ser cantada por toda a multidão de forma tão intensa que chegou quase a ofuscar o próprio Justin Vernon.
Após o final de Bon Iver, era mais do que perceptível que todos aqueles que decoraram a colina principal do Parque da Cidade estavam de coração cheio, tendo vivenciado uma experiência única e que, certamente, marcará a vida de muitos.
Enquanto muitos partiam para o que restava do concerto de Swans ou repartiam o seu tempo entre Skepta e Hamilton Leithauser, havia aqueles que rentavam recompor-se após a porrada emocional que o concerto de Bon Iver acatou. Enquanto um mero estudante com vintes e poucos anos de idade, a efemeridade da vida torna-se uma questão cada vez mais presente no quotidiano, levando a que cada momento seja aproveitado com a intensidade que merece.
Dez minutos passados dentro de uma retrospetiva sobre o destino da atual vida académica – o desfecho da mesma, as inseguridades do futuro, a capa negra da saudade, legados em formato humano oriundos de Lisboa ou Açores – ou da vida no seu geral, foram mais do que suficientes para se perceber que esta redundância apenas ofuscava a verdade absoluta de que os Bon Iver proporcionaram não só apenas um concerto mas como também uma experiência, uma terapia capaz de mudar vidas e impulsioná-las em busca de um futuro mais propício.
Foda-se, é preciso ser-se um artista do cacete para ter o poder de tornar pessoas em indivíduos melhores do que aqueles que eram minutos antes de entrarem num concerto. Isto, meus amigos, foi Bon Iver. Isto, meus amigos, foi o melhor que se viu no NOS Primavera Sound.
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Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Hugo Lima | NOS Primavera Sound 2017 – Luis Sousa | Música em DX
Evento – NOS Primavera Sound’17
Promotor – Pic-Nic Produções