Desde que se entrou nesta década atual que cada vez mais se desmistificou o “cantar em português: sim ou não?”. No passar dos últimos anos, muitas foram as bandas que atingiram relativo sucesso pelo país ao cantarem na língua de Camões; basta pegar nos exemplos de Linda Martini ou Capitão Fausto, que esgotaram recentemente o Coliseu dos Recreios nas suas respetivas estreias por aquela sala.
Em 2017, o movimento da ‘nova música portuguesa’ continua de pedra em cal e cada vez mais há registos de novos artistas emergentes que não têm receios em cantar na língua nativa. No meio de tanto disco nacional, houve um que se destacou a olhos vistos: o homónimo de Luís Severo. Dois anos depois da sua estreia em Cara d’Anjo, Luís pegou na ingenuidade e delicadeza palpável no disco para o expandir em todos os sentidos: chega quase a ser avassaladora a evolução que um músico consegue ter em apenas dois anos.
Luís Severo é um álbum que não precisa de escutas sucessivas até desenvolver uma relação simbiótica com o nosso ser. Desde o primeiro instante até ao seu término que o “foda-se, isto é tão bonito” não nos sai na cabeça. É o tipo de disco que se fala aos amigos quando queremos sugerir coisas novas para se ouvir, para falar sobre com aquela rapariga linda e culta com quem a timidez nos impede de falar de outras coisas mas que entenda o que sentimos perante o álbum.
A magnitude e a expansão que se sente entre discos é tão grande que não seria espanto nenhum se Luís se tornasse um dos grandes nomes da música portuguesa num futuro não tão longínquo. Com a possibilidade de se afirmar possivelmente como um dos melhores discos nacionais deste ano, a passada noite de sexta-feira dia 8 de Setembro ofereceu uma possibilidade única: Luís Severo, tocado na íntegra e com todos os participantes que ajudaram a polir a joia da coroa de Luís Severo. Como a ocasião adivinhava-se pontual, a sala de concertos da Galeria Zé dos Bois esgotou para a ocasião e certamente que ninguém saiu daquela noite com ‘desilusão’ no vocabulário.
Em Luís, há a capacidade de ser o ‘oito’ ou o ‘oitenta’: ao longo da tournée do seu homónimo, o artista tanto se apresentou em formato intimista, apenas acompanhado por piano, ou com a banda completa. Qualquer que fosse a temática dos seus concertos, versões algo mais intimistas das canções ou uma recriação mais fiel das mesmas, Luís sempre conseguiu deambular em ambos os percursos de forma imperial. Visto que a noite de dia 8 seria de celebração, o público teve a oportunidade de presenciar um misto de ambos os cenários, naquilo que poderia ser descrito como a experiência mais completa de um concerto de Luís Severo.
Numa noite em que se adivinhava exclusiva a Luís Severo, foi mesmo com o seu antecessor, Cara d’Anjo, que a música começou a fluir por um aquário preenchido por um mar de gente, precisamente com o tema que dá nome ao disco. Numa versão acústica do tema, tocada a piano, salta logo à atenção a versatilidade de Luís Severo em reformular um tema algo mas orientado para o ‘mexido’ para uma quase balada, inserindo nuances emocionais que não imaginávamos que a música poderia alcançar. Logo de seguida, houve “Meu Amor”, numa réplica exata da sua versão em disco, conseguindo arrebatar o mesmo punho emocional com que tão bem nos familiarizamos ao longo destes últimos meses. A jogada de Severo em optar por começar o concerto em formato de piano revelou-se desde cedo como uma aposta ganha, prendendo logo o seu apaixonado público às suas maravilhas.
Bem-disposto e visivelmente satisfeito pela enchente com que se deparava, Luís revelou-se brincalhão, um contador de histórias que partilhava como é que os seus temas viram a luz do dia, assim como revelava o peso que cada convidado teve na construção do disco. Com Bernardo Álvares (contrabaixo), Diogo Rodrigues (bateria) e Violeta Azevedo (flauta transversal) a serem os primeiros a juntar-se a Luís, ouve-se “Lamento”, um presságio de que as interpretações de todos os temas, ao longo da noite, seriam o mais leal possível às suas versões do disco. E que bonito que as coisas estavam a soar: numa sala como a da ZdB, há uma maior ligação entre o artista/público e com um disco tão pessoal como Luís Severo, a linha que separava o formato físico do vivo era cada mais ténue.
Para muitos, “Amor e Verdade” foi o primeiro contacto que se estabeleceu com Luís Severo, ou não fosse ela a faixa inaugural do novo disco. Com uma lírica facilmente identificável e uma beleza incontornável que reside na sua simplicidade, este não só é um dos temas mais fortes da carreira de Severo como uma das preferidas do público; quer seja no piano, só de guitarra em punho ou em banda completa, o nosso lado mais emotivo que a música consegue desencadear está sempre presente. Para esta noite, “Amor e Verdade” foi uma daquelas que reunião a participação de todos os convidados, com Tomás Wallenstein, Manuel Palha, Francisco Ferreira, Beatriz Diniz, Manuel Lourenço (Primeira Dama) e Teresa Castro a juntarem-se aos colegas. Quer fosse na delicadeza do coro, no sentimento imposto pelo violino ou na maneira como Luís Severo inseria toda a sua emoção naquilo que pregava, o público da ZdB assistiu à derradeira versão ao vivo de “Amor e Verdade”, aquela que ganha, por uma larga margem, o estatuto da versão que melhor traduziu a beleza inserida nesta canção.
Apesar de todo o cariz sentimentalista que algumas das músicas de Severo conseguem ter, a verdade é que a sua versatilidade permite-lhe trocar facilmente de horizontes, conseguindo inclusive assinar temas que desencadeiam sensações de felicidade capazes de deixar qualquer um com um sorriso estampado no rosto, como “Planície (Tudo Igual)” ou “Escola”. Já próximo do fim, veio um dos temas mais sonantes de Severo e que tão facilmente descrevia o que caracterizava o ambiente daquela noite: “Boa Companhia”. Rodeado de bons amigos, tanto em palco como fora dele, Luís proporcionou ao público aquela sensação, que só a música tem o poder para tal, de nos abstrair de todos os problemas e tumultos que nos atormentam, cagar para aquela merda e simplesmente deixar-nos levar pela felicidade que a canção desencadeia.
Tal como no disco, o final veio sobre o nome de “Olho de Lince”, um festim onde todos os músicos do palco, mesmo não participando no tema, divertiam-se tanto como o público que daria tudo para que a noite não terminasse ali. E esse desejo foi mesmo cumprido: entre os agradecimentos da praxe, seguiu-se um encore peculiar que trouxe novamente todos os participantes da noite a palco para uma interpretação acapela de “Lábios de Vinho”, tema término de Cara d’Anjo. Sem o auxílio de microfone – um ressalve para o público ordeiro e silencioso – Luís Severo, uma guitarra e a sua ‘boa companhia’ cantaram o tema num final que poderia ser descrito em duas palavras que conseguiriam também descrever toda noite: ‘muito bonito’. Com o público a juntar-se no refrão, não poderia ter havido um final melhor para o concerto.
Já com o concerto terminado, a sensação de ‘dever cumprido’ pairava pelo ar sim, mas aquilo que prevalecia era certamente o sentimento de orgulho, a felicidade em ver como coisas tão simples e sinceras conseguem pompear momentos tão bonitos. Pegando no exemplo de Luís, desconfia-se que um outro membro do público tenha finalmente arranjado a coragem de pregar um beijo, ao seu ‘amor’ e dizer que, naquela noite, ela era a sua ‘boa companhia’. Se tal não se sucedeu, haverá sempre conversas sobre Luís Severo para matar a saudade até lá.
Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Ana Viotti
Promotor – Galeria Zé dos Bois