Se a vida passa a correr, há que aproveitá-la até ao fim. Para todos os efeitos, o segundo dia do Jameson Urban Routes foi uma demonstração de vitalidade de todos os intervenientes, de como a música pode dar um abanão na alma. Se a energia contagiosa de Scúru Fitchádu e a potência bem oleada dos Black Bombaim por si só já seriam dignas de registo, o que marcou verdadeiramente a noite foi a vitalidade com que Peter Brötzmann, septuagenário e lendário saxofonista alemão, acompanhou o trio barcelense numa fusão de caos controlado entre rock e jazz.
Antes de mais, convém dizer que este redator não vai fingir que é versado na obra de Brötzmann, pois isso seria incorrer numa mentira de perna curta. Os Black Bombaim são bem familiares por estas partes, mas já o conhecimento quanto ao saxofonista de free jazz cinge-se ao trabalho colaborativo que o mesmo assinou com a banda de rock stoner/psicadélico/etc no ano passado. Esse LP, por sua vez, foi propiciado pelas atuações que os quatro deram no festival Rescaldo no ano passado – se ao vivo já soavam bem ao sabor de improvisações, o resultado gravado de uma partilha criativa seria tanto melhor, ainda por cima porque os Black Bombaim já tinham registado experiências com outros saxofonistas, Rodrigo Amado ou o infelizmente falecido Steve Mackay à cabeça. Tudo isto para dizer que foi grande a expectativa de ver como esse material se traduziria no Musicbox.
Desde que subiu ao palco do Musicbox, de mangas de camisa desbotoadas e bigode oitocentista, Peter Brötzmann mostrou logo que não estava ali para ser questionado por jornalistas cépticos quanto ao seu vigor. Tal como no disco, o tiro de partida é por ele dado com um solo portentoso, qual sacudidela de notas discordantes, até a banda entrar e dar início às conhecidas viagens cósmicas que são o apanágio dos Black Bombaim. Como seria de esperar, o resultado não foi tão límpido aqui: houve alturas em que o saxofone ficou enclausurado pelas paredes de som, com apenas os sopros mais estrepitantes a fazerem-se soar. Não quer isto dizer que Brötzmann tenha fraquejado em momento algum, é só porque é certo e sabido que Ricardo Miranda (guitarra), Paulo Gonçalves (bateria) e Tojó Rodrigues (baixo) que são umas máquinas de rock ruidoso cuja densidade pode ser difícil de penetrar.
As dinâmicas entre banda e convidado foram se alterando ao logo do concerto, às vezes no decurso das próprias músicas. Seguindo a máxima popularizada por Gandalf, o Cinzento – de que um feiticeiro nunca se atrasa nem se adianta, chega precisamente quando quer – o saxofonista entrou e saiu das músicas quando lhe pareceu mais conveniente, mas sempre em harmonia com a restante banda. Por vezes, guitarra e saxofone mediram forças quando Ricardo desatava a fazer solos extraordinários e Brötzmann mimetizava com igual categoria em rasgo turbulentos de sopro. Noutras ocasiões, como na terceira malha, a banda remeteu-se a uma posição mais subalterna, criando uma plataforma rítmica para que o saxofone tomasse a dianteira, para depois toda a banda desembocar numa “extravaganza” de virtuosismo. Até ao fim, Brötzmann ainda sacaria do oboé para dar um ar da sua graça, naquela que foi uma espetacular demonstração de intensidade e bom gosto.
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Se no caso da união entre os Black Bombaim e Peter Brötzmann há a junção de dois géneros com fronteiras muito bem definidas, o mesmo não se pode dizer do sincretismo que caracteriza a música de Scúru Fitchádu. Funaná apunkalhado ou electropunk crioulo? O que interessa é que a mistura resulta num petardo que tanto é dançável como passível de gerar tumulto. À frente encontra-se Sette Sujidade, ou Marcus Veiga, de ferrinho na mão e que da sua voz rouca e imponente lança repetidas palavras de ordem sobre uma amálgama de ritmo, distorção e samples de teor político e de riffs metalizados, proporcionados por Ronnie D’Alva na percussão e Nuno Santos no computador (vão lá procurar qual é o nom de guerre desta lenda do hip-hop nacional). A postura agressiva e ativista faz sentido tendo em conta a entrevista que Marcus deu recentemente, de que historicamente o Funaná não apelou apenas à dança como também foi um veículo de catarse para um povo sofredor e trabalhador em partes iguais.
Faz, portanto, sentido que a música Scúru Fitchádu tenha ambos conceitos – a libertação corporal e o activismo – enquanto metas. Ravoluçan ketu e Lobus atingiram com o propósito de denunciar a violência e a opressão, ao passo que S’ma Laba Burkan homenageou “as gentes da lava”, como Marcus referiu, tendo também sido uma ode dedicada aos que trabalham a terra e que tudo perderam nestes incêndios que devastaram Portugak. Um momento mais tocante, justamente sintetizando a proposta de demonstrar que o Funaná não é somente festa, foi quando Marcus pegou na concertina – um “date com a miúda” como lhe chamou e tocou um baile de gaita pedindo ao público para marcar o ritmo com palmas. Houve ainda tempo para estrear músicas novas, tendo o concerto terminado com uma delas, Estranho Como Tu, Louco Como Eu (na tradução para português), e antevendo uma exploração contínua deste tipo de som para a frente. Assim acabou o segundo dia do JUR, de pés cansados e coração em chamas.
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DIA 25
Jameson Urban Routes’17, dia 25 – A vida é um sopro
+ Jameson Urban Routes’17 Dia 25 Black Bombaim & Peter Brötzmann
+ Jameson Urban Routes’17 Dia 25 Scúru Fitchádu
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Jameson Urban Routes’17, dia 26 – Afeição e ternura no terceiro dia do JUR
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Jameson Urban Routes’17, dia 27 – Sangue, Suor e Rock n’roll
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Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Nuno Cruz
Evento – Jameson Urban Routes