Backstage

Vítor Rua, os Anjos e a Metafísica

Falámos com Vítor Rua, etnomusicólogo, produtor, multi-instrumentista e compositor a propósito da recente edição do duplo CD Vítor Rua & The Metaphysical Angels – Do Androids Dream of Electric Guitars? (Clean Feed Records), um trabalho em que o celebrado compositor introduz um método composicional muito próprio num disco que já lhe valeu a ele e ao colectivo muito boas criticas pelo mundo fora. Sempre associado a nomes como GNR e Telectu, é mais vasta no entanto a obra deste músico e tentámos trazer aos nosso leitores uma percepção do mundo de um músico que, como o próprio admite, é muito difícil de catalogar, uma vez que se estende por territórios como o rock, o jazz avant-garde, o minimalismo, a música concreta, a electrónica, a folk, o punk… a lista é imensa assim como a quantidade de obras editadas em formato físico ou digital. Convosco, Vítor Rua.

Música em DX (MDX) – Vítor, muito obrigado por esta entrevista para a Música em DX. Queria desde já começar por abordar o teu novo trabalho, Vitor Rua & The Methaphysical Angels com o titulo de Do Androids Dream of Electric Guitars?. Neste caso, já todos te conhecemos. Começo por te perguntar quem são os Methaphysical Angels?

Vítor Rua – Eu tentei para este disco, como digo este disco deu início com um cd de guitarras. Estava eu ainda a trabalhar, e imediatamente vi as possibilidades deste meu método de composição que tentei para este caso em particular e imediatamente observei que seria bom escrever e compor de fora desta forma para um ensemble. E então mal pensei nisso, tentei reunir músicos meus amigos que são de topo nos instrumentos que tocam, e com quem eu trabalho já há anos, por exemplo, Manuel Guimarães, pianista com quem já trabalho há mais de 30 anos, trabalhei com ele nos Kingfishers Band, um dos primeiros grupos que tive no Porto e que depois voltou a trabalhar comigo já nos anos 90 no meu projecto Video Ensemble para aí desde 1991 a 1997 – tocámos nos melhores: na Gulbenkian, na Serralves, no Monumental e portanto, demos concertos nos melhores festivais de música contemporânea e depois a partir daí passei a  trabalhar com ele regularmente em música para teatro e dança e em que ele colabora comigo muitas vezes e também em concertos; o Luís San Payo também, já desde os anos oitenta que somos amigos e só começámos a colaborar assim mais efectivamente nos anos 2000, a partir deste século, e não parámos até agora – passou a ser um dos bateristas meus de eleição, um músico extraordinário que colabora em vários projectos entre os quais este meu, mas que já participou em muitos outros também; depois temos o Hernâni Faustino que é um contrabaixista que participa em tantos projectos nacionais e internacionais que seria exaustivo estar aqui a referir todos, mas é um músico que conheço também há bastante tempo, desde os inícios dele em grupos de rock e assim mas agora no jazz e na música improvisada consagrou-se há que tempos como um dos maiores contrabaixistas internacionais. Depois achei por bem ter sopros e escolhi o trompete e o clarinete. No clarinete, escolhi o Paulo Galão que conheci a participar nos meus workshops e a partir daí vi-o a começar como músico da improvisada e a tocar com os melhores músicos nos melhores festivais e é um músico extraordinário e versátil, bem como o Nuno Reis que colabora em biliões de projectos também e que é, quanto a mim, um dos melhores trompetistas nacionais e internacionais e que eu sei que posso contar com ele e com quem já colaborei ao longo destes anos em vários projectos, sejam meus ou, como digo, em música para dança, teatro ou cinema. – E foram estas as pessoas que resolvi escolher porque são os músicos que realmente… – podia escolher outros e escolho em inúmeros projectos que tenho, neste caso em particular achei que eram as pessoas indicadas pela sua versatilidade, por exemplo um músico como o Manuel Guimarães tocou folk, tocou jazz, tocou rock, é maestro de filarmónicas e tocou músicas populares portuguesas.

MDX – Neste caso (desculpa interromper) precisas da versatilidade dos músicos para trabalhar esta linguagem?

Vítor Rua – É estritamente necessário mas, uma vez que este trabalho vive de uma verticalidade de multi-estilos, reparemos: todos os músicos que escolhi são de uma versatilidade incrível a nível de estilos musicais: o Nuno Reis pode estar hoje à noite a tocar um concerto de música afro-cubana, outro dia pode estar a tocar jazz e outro dia pode estar a tocar num grupo de rock e todos eles têm essa versatilidade que me interessava neste projecto.

MDX – Referes num escrito que me mostraste, que o Derek Bailey estava enganado no sentido em que a improvisação não é linguística e não tem um idioma. Referes aqui que neste trabalho abordas uma improvisação meta-idiomática e que ela pode ser abordada de uma forma vertical e horizontal. Gostava que explicasses estes conceitos e como se traduzem neste disco.

Vítor Rua – Quando se fala em horizontalidade e verticalidade nesta questão da música, por exemplo, referimos horizontalidade – seria a música no tempo, uma melodia que decorre – o tempo começa e vai passando tempo, não é? Agora, verticalidade era ter uma orquestra inteira, ter uma flauta, um trompete, trombone, tuba, piano, violinos por exemplo e que de repente fazem: “Pam!”

MDX – Então a verticalidade tem a ver com o arranjo?

Vítor Rua – A horizontalidade tem a ver com o tempo e a verticalidade com a simultaneidade no tempo. Para dar um exemplo: ao mesmo tempo – um guitarrista estar a tocar, por exemplo no caso deste disco, a determinada altura é possível ouvir-se uma guitarra a improvisar num estilo perto ou similar ao estilo flamenco, como ao mesmo tempo está outra guitarra dentro do que chamaríamos música total improvisada, outra guitarra ao mesmo tempo a tocar dentro do grindcore ou trash-metal e outra guitarra, no jazz – tudo ao mesmo tempo. Ora isto é uma  espécie de novidade na música, pois o que acontecia até agora, existia isso mas na horizontalidade. Compositores como o Frank Zappa ou depois o John Zorn já tinham feito uma coisa semelhante como estarem a tocar um minuto e meio de rock depois 30 segundos de música experimental, mais um minuto de jazz, 20 segundos de tango, depois 30 segundos uma valsa. O Zorn o que fez foi isso mas comprimindo em peças de 7 segundos, 15 segundos, 27 segundos. Mas esses fazem na horizontal, no meu caso neste disco o que acontece é uma verticalidade de estilos ou seja ao mesmo tempo: pode estar alguém a tocar no estilo de jazz, outro no estilo de grindcore, outro no estilo flamengo ou de fado.

MDX – Ou seja, não vão alternando entre os géneros. Pode haver uma harmonia entre os géneros ao mesmo tempo?

Vítor Rua – Pois. Podes dizer que é uma harmonia ou não. Há uma simultaneidade de layers ou texturas, ou estilos diferentes e não o que acontecia até agora em que estava primeiro um estilo e depois vinha outro estilo…

MDX – Mas ajuda-me a perceber como é que tu por exemplo… tu compões para orquestras mas no caso da improvisação, como é que tu comunicas e te socorres desses géneros para comunicar aos músicos aquilo que pretendes? Há quem diga que os géneros às vezes são redutores porque é mau catalogar isto ou aquilo mas de certeza que como músico, estou-te a imaginar a dizer: “olha quero isto mais folk…”

Vítor Rua – Eu sobre isso tenho a minha opinião, talvez pelo meu trabalho de investigador científico. Acho que as catalogações e catalogar as coisas é muito importante, agora pode não ser necessariamente importante para o criador ou artista…

MDX – … Pode ficar preso a uma ideia, é isso?

Vítor Rua –  Não é bem isso… Preso pode ficar e olha, muitas vezes fica. Acontece muitas vezes nas artes plásticas mais até do que na música, estou agora a supor. Mas porque é que eu digo que é importante catalogar? estou a pôr-me numa posição de hétero-musicólogo em que existe a ciência: a organologia que estuda os instrumentos musicais. Vamos imaginar que não se tinha organizado nem catalogado os instrumentos musicais em secções de sopros, percussões, teclados, cordas, electrónicos… ia ser difícil. A catalogação é importante, agora o que estavas a dizer… e aí vinha a segunda parte da resposta para mim… vou dar um exemplo: os Telectu existiram durante 30 anos até  falecer o Jorge Lima Barreto. Nós começámos com um disco de art rock, o Ctu Telectu e depois logo a seguir o Belzebu que era um disco de música minimal, repetitiva. A seguir a esse fizemos o Off Off que embora tivesse elementos de música minimal repetitiva já tinha outras coisas como música ambiental, uma espécie de jazz minimetico, etc. A seguir fizemos o Performance que era música para performance, que era música para performance que já pouco… – às vezes usávamos elementos de minimal repetitiva. O Rosa-Cruz ainda e o Telefone até 85/87. A partir daí, estávamos já a fazer música improvisada, o jazz minimetico… ou seja, isto para dizer o seguinte: vamos imaginar que os Telectu durante cinco anos de entre outras coisas realizámos obras de música minimal repetitiva – como disse, durámos 30 anos, em 30 anos vamos supor que cinco foram dedicados à música minimal repetitiva mas não em exclusivo e depois os outros 25 foram dedicados totalmente à musica improvisada ou assim. No entanto continuavam sempre, íamos a entrevistas ou assim e diziam: “temos aqui os Telectu, os músicos de minimal repetitiva”. Ou seja eu podia fazer um tango que as pessoas diziam: “ah! música minimal repetitiva!” portanto, por um lado é importante que haja a catalogação desses estilos mas por outro lado o músico preso (como um actor fica preso a uma série ou a um filme que faz, a partir daí faz sempre de bonzinho ou sempre de mau, ou de gangster) na música às vezes também acontece isso. Vamos supor, mais grave ainda, eu estava a falar de um grupo em que estive 30 anos, os Telectu, mas nos GNR só estive três quatro anos embora tivesse fundado, demiti-os e eles continuaram. Estive três anos, saí do grupo. Nos Telectu estive 30, mais um zero à frente, no entanto ainda hoje as pessoas: “Vitor Rua, ah! o autor de Portugal na CEE, gosto muito (…)”. No meu caso catalogar-me é muito difícil porque eu tenho perto de 200 cd´s editados, à volta de 160 estão em mais de trinta plataformas digitais, existem fisicamente mais de 50 discos meus em que não estou a contar com colaborações (…) comecei no rock, passei pelo punk, estive no folk, no country, nos King Fishers Band, nos Telectu, abordei música concreta, a música electrónica a música minimetica, a música espectral e a música serial como compositor. Na minha vida passei por tantos estilos musicais que alguém dizer que o Vitor Rua é do rock, o Vitor Rua é do jazz… todos estão certos e todos estão errados.

MDX – No teu caso em especial, também porque o número de que falas e que é conhecido das obras editadas é impressionante (mas no teu caso em especial aí seria um pouco mais difícil de catalogar) o que eu gostava de te perguntar (e penso que para quem toca música, para quem gosta de ouvir música e para quem tem até uma ideia e gosta de pensar nestas coisas…) tu como compositor: existe alguma diferença  por exemplo na maneira como tu compões para uma orquestra ou para um quarteto de jazz? ou para um trio de rock?

Vítor Rua – É curioso o que estás a dizer, porque em princípio não, ou seja em principio não: o que é isto que quero dizer? – Até 2017 só terá acontecido muito ocasionalmente. Estou-me a recordar da peça que escrevi, o Interstellar Overdrive Remix, que foi uma encomenda da Casa da Música do director, o António Jorge Pacheco que me convidou para participar fazendo um original de uma obra dos Pink Floyd do Syd Barrett, o Interstellar Overdrive. Nesse caso uma vez que era uma música de rock, eu peguei nas técnicas, nos métodos e ferramentas do rock que eu ao longo dos anos conquistei para compor para essa orquestra. Mas utilizei outros elementos que não têm a ver, portanto eu diria que até 2017 o que me perguntas não se passa. A forma como eu compunha para um grupo de rock ou um solo meu, ou depois como escrevia para uma orquestra ou para um quarteto de cordas não tinha nada em comum até 2017 porque quando surgiu este trabalho, como eu digo, comecei a trabalhar em guitarra solo. Imediatamente me apercebi que podia aplicar este método composicional para outros instrumentos e neste caso portanto, para um ensemble e experimentei um ensemble, neste caso um sexteto, e resultou. E como resultou eu logo a seguir comecei a compor para orquestra e neste caso sim, tanto eu a solo como o ensemble do sexteto, como agora as peças de orquestra que estou a compor, todas elas estão a usar este meu novo método compositional a que eu chamo de composições sobre improvisações meta-idiomáticas.

MDX – No fundo e pelo que eu percebi então para além dessas componentes da horizontalidade e da verticalidade, é assumir que existe realmente uma linguagem, como poderia ser o inglês, espanhol, francês, numa improvisação. Ou seja não é desprovida, não digo de sentido mas de comunicação linguística, é isso?

Vítor Rua – Sim, repara: o que o Derek Bailey escreveu e disse e depois logo na re-edição nos anos oitenta já contrariou e já disse o que eu estou a dizer agora é que reparem: ele queria classificar aquilo que eles estavam a fazer, os novos improvisadores da free-improvisation e total-improvisation, mas não havia esse termo, não havia o free-improvisation, não existia, porque aquilo estava a surgir (…) e a determinada altura o que ele queria diferenciar, o que ele queria dizer é que existe improvisação em todos os estilos de música: existe improvisação no jazz, no rock, na música indiana, na música chinesa, no tango, mas o que ele estava a fazer ou o que eles estavam a fazer, os músicos nesse estilo que estava a surgir, não era nada disso (…) então o que ele disse a partir daí nesse livro Improvisation, disse que havia a música improvisada, a música improvisada idiomática e a música improvisada não idiomática – o que ele queria dizer com isto: a música improvisada idiomática era a música improvisada que está ligada a um idioma ou a um estilo musical  ou género quando se improvisa no rock, no jazz, na música cubana, música chilena, africana, indiana ou seja o que for. A música ou improvisação não idiomática seria aquela que não está ligada a nenhum idioma ou seja que não está ligada nem ao rock nem ao jazz, ou…

MDX – … Estou-me a lembrar por exemplo de algo que ouvi a Carol Kaye da Wrecking Crew dizer que nos anos 50 e 60 quando os músicos de jazzimprovisavam ou faziam jams e quando aparecia um músico que tocava escalas e pentatónicas, diziam: “ah não, aquele rapaz não, porque toca escalas” enquanto eles improvisavam em cima dos acordes. Pessoalmente, como é que na tua cabeça decides como é a tua abordagem por exemplo numa linguagem rock: “eu aqui vou tocar uma pentatónica, não vou” as pessoas têm uma ideia de que a música improvisada tem um regime free e que essencialmente é muitas vezes ir para um palco ou estúdio e ver o que pode acontecer. No teu caso e falando neste CD, já partes com uma ideia e um método de trabalho, a tal improvisação meta-idiomática? o quanto disso é pensado?

Vítor Rua – Quando nasceu não era pensado. Há dez anos que estava a preparar este disco, mas as coisas demoraram o tempo que foi necessário (…) este é o primeiro de três cd´s em que vou utilizar o mesmo ensemble (…) não garanto que os outros dois saiam duplos (…) quando comecei não pensei assim: vou fazer uma coisa que vai ser na vertical, na horizontal e vai ter… – não, aquilo nasceu de uma forma muito simples: eu com a guitarra clássica a ir tocar para o jardim com frases muito simples e finalmente quando comecei a trabalhar e a gravar finalmente quando ouvi é que reflecti e disse: “espera aí, o que eu estou a criar é uma coisa absolutamente nova” e depois então aí é que fiz uma análise daquilo que estava a fazer e aí é que cheguei à conclusão que estava a fazer composições sobre improvisações meta-idiomáticas. Mas é uma coisa que vem à posteriori, não foi uma coisa pensada… mas ia explicar o termo composições…

MDX – … É uma reflexão sobre como tu na tua cabeça e o que tu estavas a sentir na altura, aonde o teu instinto te levou e depois acabaste por ver “é isto que estou a fazer” ?

Vítor Rua – … Sim, mas ia te explicar o termo composição sobre improvisações meta-idiomáticas porque parece um bicho de sete cabeças e é muito simples: são composições ou seja eu componho sobre improvisações ou seja eu faço. Vamos supor, vou dar um exemplo: quando é o meu trabalho, o CD 1 que sou eu nas guitarras, eu agora chegava aqui ao estúdio  pegava na guitarra e fazia uma improvisação total ou então uma improvisação estruturada no sentido em que dizia assim: “vou improvisar só nestas três cordas e só usando estas notas mas da forma que quiser” e fico 5 minutos, 7 minutos a improvisar assim, paro, volto atrás e sem ouvir aquilo que fiz faço outra guitarra mas por exemplo já noutro estilo musical, mas improviso, sai-me no momento, quando ponho a gravar não sei o que vou fazer, são improvisações e são improvisações totais. Então eu depois de ter essas improvisações todas, esses layers, essas camadas, componho sobre essas improvisações, como essas improvisações são improvisações em vários géneros, em vários estilos musicais (pode ser flamenco, jazz, rock,  improvisada, concreta, electrónica, etc.) são improvisações meta-idiomáticas ou seja, usam vários idiomas, seria multi-idiomática ou poli-ideomática, mas depois esses idiomas todos juntos criam uma coisa nova que é a meta-idiomática – está acima de qualquer idioma.

MDX – Este disco foi gravado em regime “live”. Foi uma experiência mais controlada em estúdio?

Vítor Rua – O disco 1 foi gravado aqui no meu estúdio e eu sozinho fui ao mesmo tempo engenheiro de som, produtor, intérprete, improvisador, arrangador e até masterização, fiz tudo aqui. O sexteto foi feito da seguinte forma: fomos ao estúdio do António Duarte, o Dim Sum Studio e cada músico, não estavam todos, primeiro aparecia por exemplo o pianista e ouvia: disco 1 e eu dava-lhe umas certas indicações e ele improvisava sobre isso e era o primeiro “take” que ficava, depois chegava o trompetista e eu dava umas indicações e ele fazia um “take”, dois, e foi assim, nunca estivemos todos juntos a tocar ou a ensaiar, eles tinham a música…

MDX – Gravaram “take” a “take” sobre a base que estava feita no CD 1?

Vítor Rua – Sim. Como se estivessem a tocar com um guitarrista ou vários guitarristas e tivessem que improvisar sobre isso.

MDX – A guitarra eléctrica foi a tua primeira paixão?

Vítor Rua – Sim, embora primeiro tive um guitarra acústica de seis cordas de nylon durante um ano mas logo percebi que não era aquele o meu instrumento e passei para a eléctrica.

MDX – Continua a ser o teu instrumento mais fácil ou achas que hoje em dia com o futuro por exemplo a nível de programações ou teclados, será ainda o instrumento mais versátil na tua opinião para a improvisação?

Vítor Rua – Eu sou multi-instrumentista mas claro que a guitarra é o meu instrumento de eleição, aos nove anos tive a guitarra acústica clássica, aos dez tive a guitarra eléctrica, aos onze o sintetizador e foram três instrumentos que sempre me acompanharam, mas também toco clarinete, também toco harmónica, toco algumas percussões, toquei Chapman Stick, fui introdutor em Portugal do Chapman Stick, uma das minhas guitarras que usei por exemplo no Heavy Mental é uma guitarra  de 18 cordas, seis cordas de nylon, 12 de metal, tenho uma guitarra de oito cordas que são quatro cordas de baixo e quatro cordas de guitarra (…) este disco por exemplo nasceu na guitarra Ramirez na guitarra clássica de seis cordas (…) nos Telectu deixei de tocar sintetizadores praticamente ou só utilizava nos meus projectos, porque o Jorge tocava sintetizadores (…) provavelmente se não tivesse existido Telectu e tivesse continuado em grupos de rock ou assim provavelmente tocaria baixo guitarra mas também de certeza absoluta sintetizadores.

MDX –  Fala-nos um pouco então da abordagem que vão ter no dia 31… vai haver um concerto de apresentação no Sabotage no próximo dia 31 de Outubro.

Vítor Rua – Sim, na noite de 31 de Halloween na terça-feira creio, portanto quarta é feriado, as pessoas podem ir à vontade, abre as portas às dez com o concerto às onze no Sabotage no Cais do Sodré é um clube fantástico de rock, nessa noite vai ser uma noite especial porque é a primeira vez que estes músicos se vão juntar, são todos músicos de excepção, os Anjos Metafísicos, só por isso já valia a pena, mas também pela oportunidade de ouvirem este disco que está a ter uma aceitação extraordinária nos Estados Unidos, também no Japão, na Russia, na Itália, em Espanha, na Wire teve uma critica fabulosa, cá em Portugal no Público o Vítor Belanciano fez uma coisa extraordinária sobre, já vários blogues e criticas sobre discos em Itália e Espanha e assim,  especialmente nos Estados Unidos tem saído em listas dos melhores vinte discos do ano, numa já era um dos cinquenta melhores discos de Jazz de sempre ao lado do Charles Mingus e…

MDX – … Isso deve dar-te bastante orgulho a ti mas também à Clean Feed que aceitou este projecto…

Vítor Rua – A clean feed é uma editora que neste momento foi considerada uma das duas melhores editoras de jazz no mundo, na DownBeat creio, só para dar um exemplo as pessoas podem comprar este disco nos Estado Unidos, no Japão, em Tokyo, Nova York, Paris na Fnac de Paris, em Londres, se forem a qualquer Fnac em Portugal este disco não está à venda aliás como nenhum disco quase da Clean Feed, é uma vergonha mas isso seria outra entrevista….

MDX – Sem querer sair um pouco do que estás a dizer, mas tu achas que as pessoas ainda olham para os discos de música improvisada ou para os discos de jazz como apenas sendo para uma franja intelectual da população à partida… e os responsáveis pela lojas de discos?

Vítor Rua – Este não é um disco de jazz ou de improvisada, a ser seria mais um disco de jazz mas um bocado de jazz improvisado mas também tem rock, tem muitos estilos.

MDX – Sim, é mais arrojado com vários estilos mas não falando só neste disco…

Vítor Rua – Essa pergunta talvez nos anos oitenta talvez fizesse sentido, agora não faz sentido eu vou-te dizer porque aquilo já não é gente, são máquinas que tomam decisões e algoritmos. Eu vou-te dar um exemplo: a editora Orfeu, quando ela retomou e lançou o disco de homenagem a Zeca Afonso, o disco de JP Simões, o  meu disco o Heavy Mental, portanto discos extraordinários que eles tinham para editar entre outras, a Fnac que será em Portugal talvez o sítio onde mais facilmente se pode distribuir coisas e as pessoas terem acesso, só para ter a ideia como eles compravam as coisas à Orfeu: “Quero sessenta de cada (…)” – ele estava a comprar ao quilo e não devia comprar ao quilo (…). Eles compram 60 discos de alguém e enquanto houver na lista de computador um exemplar, nem que seja no Funchal, eles não encomendam porque ainda há um, se esse disco ficar dez anos sem ser vendido, eles não fazem outra encomenda…

MDX – No caso deste disco, as pessoas vão poder encontrá-lo obviamente nos teus concertos neste próximo, no Sabotage…

Vítor Rua – Também me podem comprar a mim, podem comprar na Clean Feed on-line e podem comprar em suporte digital em mais de 30 plataformas, Amazon Itunes e assim, mas fisicamente é muito fácil, no fim desta entrevista entram em contacto comigo. Já há muito poucos, já vendi quase todos.

MDX – Hoje em dia acabas por ser tu próprio o vendedor da tua obra, acaba por ser melhor para ti? Será esse o caminho para os músicos?

Vítor Rua – Eu por acaso muitas vezes e até com Telectu chegámos a ter edições nossas, mas quase sempre com editoras, neste caso uma editora, mas eu próprio recolhi discos à editora e vendo-os com o consentimento da editora, e a editora  vende do lado dela, e dizem: “Deus queira que vendas tudo e bem”, e é o que está  a acontecer. O disco está quase a esgotar, e da parte dele espero que esteja a correr tudo bem, porque pelos vistos está, como digo já vai em mais de 15 páginas de busca Google, com páginas na China, na Rússia, nos Estados Unidos e Itália, em Espanha, França, a Europa inteira, e agora é como digo a cereja no topo do bolo é irem no dia 31 ao Sabotage às 23 horas assistir.

MDX – A Música em DX estará presente para fazer a cobertura do concerto. Este é um disco que tu certamente gostavas de apresentar neste conceito, que logo à partida quando se vai para um palco se percebe que é funcional. Como vais fazer no Sabotage, tens planos para levar a mais palcos portugueses este disco?

Vítor Rua – Sim, eu disse que a partir de finais de Outubro estava disponível para com este projecto durante um período de tempo fazermos uma espécie de uma tournée e assim, e neste momento temos alguns concertos já programados, um ainda este ano em Coimbra possivelmente no Salão Brasil dia 2 de Dezembro, falta só confirmar por causa da simultaneidade de duas bandas para essa data mas em principio estará confirmadíssimo; depois no dia 23 de Fevereiro em 2018 vamos participar num grande festival já de culto cá em Portugal, não posso dizer ainda o nome, mas vamos participar num festival de música experimental, alternativa, jazz, é no dia 23 de Fevereiro, mas esse ainda está longe ainda dá tempo (…) e nesses sítios podem comprar o disco que levamos sempre.

MDX – Falaste numa edição ou re-edição em Londres?

Vítor Rua – Isto faz parte de um tríptico, são três cd´s e há dois cd´s que vão sair: um em 2018 de certeza absoluta e o outro em finais de 2018 ou  2019, em 2019 fica concluído este tríptico deste projecto. No entanto já como disse já comecei outro projecto que é usar este método composicional para orquestra, e já compus uma peça e estão a ser gravadas e vão ser tocadas 12 peças minhas para saxofone e orquestra pelo Daniel Kientzy que compus uma por mês em 2014 e vai ser interpretada pelo maestro Brancusi que é um maestro extraordinário e que um dia viu o Daniel Kientzy sair com umas partituras na mão e perguntou: “o que estás aqui a fazer?” – e ele disse: “estou a fotocopiar as partituras de um compositor português” – ele pediu para ver e disse: “eu quero gravar isto” – e ele nem sabia quem era o Vitor Rua.

MDX – O que é que falta realmente para as pessoas na tua opinião irem mais a concertos e haverem mais salas de espectáculos a apostar neste estilo de música? Por exemplo, um artista de rock queixa-se que não consegue ir tocar rock para os bares ou que não há salas de rock… 

Vítor Rua – Não vale a pena ser este estilo de música, neste momento é tudo… com excepção se for o Tony Carreira, aí vão as cabras e tudo (…) isso ai logo começa com um problema com o que os músicos de rock entendem por serem músicos de rock e tocarem rock. A maior parte dos clubes quando dizem que apresentam rock, normalmente são covers e coisas assim, mas agora eliminemos essa parte, vamos passar a falar pelos que supostamente levam grupos de rock e assim. O Sabotage é um deles precisamente, agora quer dizer, se calhar 80 por cento dos grupos ou o que se chama de música rock que anda aí a tocar pelos bares é musica ligeira comercial, imitação, imitativa, cópias de coisas que já de si são más lá fora e assim, e que muito dificilmente se podia incluir ou enquadrar naquilo que é uma coisa, num estilo que chamemos rock. Fazer música rock não é só pegar nos instrumentos de rock fazer “tam tam tam tam” e cantar uma coisa qualquer e depois dizer que é rock. Um músico de rock tem de ter uma vivência de rock, por exemplo se eu vos disser assim: um músico de rock chega a casa à meia-noite e meia e ouve-se a mãe dizer: “ó filho isto são horas de chegar a casa? amanhã devias ficar de castigo e não sei quê, levantas-te tu e vais fazer o pequeno  almoço, e vai-te deitar, e está caladinho” – Vocês estão a imaginar o Jimi Hendrix a chegar com uma “trip” de heroína a casa e supostamente a mãe a viver com ele e a dizer: “ó Jimi isto são horas de chegar a casa? vai-te já deitar e toma um Eno” (…). Músico de jazz é um jazz men; um músico de rock… – cá não há rock, quase que se conta pelos dedos os exemplos de rock, para já não existe rock português em segundo lugar existe é rock feito em Portugal, e rock feito em Portugal são pouquíssimas as pessoas que fazem coisas com qualidade, rock em Portugal conto pelos dedos da mão.

MDX – Eu falei no rock como um exemplo… a falar das queixas dos músicos…

Vítor Rua – Ah, mas então o que faz as pessoas irem aos concertos ou não irem aos concertos? Eu vou-vos explicar: pelo preço não é, a não ser que estejam a falar daqueles festivais das cervejas ou das telecomunicações, aí paga-se caro, não é? Parece que os bilhetes chegam a ser 80 euros ou cem euros para irem assistir àqueles festivais das cervejas e àquelas merdas. Agora ir à Gulbenkian ver por exemplo, ou sei lá, a pequena missa solene do Rossini, são sempre excelentes orquestras, a pessoa ter a oportunidade de ir ouvir por exemplo, como eu já assisti uma das obras primas da música ocidental escrita ao vivo, como eu já assisti: o Stockhausen, o Sirius, ou o Répons do Pierre Boulez, uma pessoa estar no sítio e pagou, pagas seis euros, nove euros, e estás a assistir a Rossini a Stockhausen ou até músicas etnográficas (…) ir a um clube de jazz e pagar seis euros com direito a uma cerveja para ir ouvir um grupo de jazz. Por amor de deus! Os bares estão tão cheios que as pessoas estão cá fora a beber e assim, a gastar dez vezes mais do que os seis euros sem verem nada! Se as pessoas gastam seis, doze, vinte, trinta euros numa noite a beber e a comer e a andar aí (…) podem ir ao Desterro ver música improvisada por três euros, ou aqui à Zaratan ver a exposição por um euro e meio ou de borla. Por seis euros não vão ouvir Beethoven ou Stockhausen ou música africana ou indiana e em sítios fantásticos como a Gulbenkian ou a Culturgest ou a Serralves no Porto ou então em clubes? Por exemplo pagar seis euros para ir ouvir este concerto no Sabotage no dia 31, seis euros vai pagar a pessoa ao beber um whisky num sítio qualquer, e não vai ver nada, não vai ver este concerto extraordinário.

MDX – No fundo no fundo, será uma escolha entre a pessoa ir ver algo ou ir anestesiar-se?

Vítor Rua – Não, é mesmo falta de contacto e de querer… as pessoas dizem: “ah música clássica… Beethoven… quero lá ouvir Beethoven”, mas depois quando vão ver, quando ouvem a dez metros delas uma harpa a tocar, um oboé que nunca ouviram na vida dizem: “ah que bonito” e depois passam a ir. O mesmo acontece no jazz se uma pessoa vai uma vez, duas vezes assistir jazz depois o que é que custa pagar seis euros? as pessoas pagam sei euros à mulher-a-dias (…) pagam 12 euros ao canalizador à hora (…) vão ao médico pagam 40 euros para estarem a dizer: ”dói-me aqui, aqui e aqui” e não pagam seis ou dez euros para irem ver um concerto?  “Ah, vejo na net… vejo na net” – não é a mesma coisa, hoje põe-se tudo na net. “Queres vir acampar?” – “Não! vou ver um programa do Geographic Magazine”; “Queres vir ao cinema?” – “Não! vejo na net” (…) ok, tudo óptimo pode ser isso tudo mas é totalmente diferente estar a ouvir nos auscultadores. Vocês acham que é a mesma coisa estar a ouvir uma cítara ao vivo na Gulbenkian e estar a ouvir um mp3 do Ravi Shankar? – não é a mesma coisa.

MDX – Numa última questão, vocês vão recriar este disco, ou seja, vão recriar algo que foi improvisado. É um momento único, no sentido em que vocês recriam fidedignamente aquilo que foi feito em disco e nunca é igual?

Vítor Rua – Não. Vai haver uma improvisação estruturada, ou seja, músicos vão dentro dos períodos temporais pré-determinados. Neste disco, vamos tentar reproduzi-lo o mais fielmente possível e eles vão intervir com coisas por exemplo, vamos supor: o trompetista: se no tema dois o trompetista usou surdina, ele lá no tema dois vai usar surdina. Se no tema três, o pianista tocou à base de arpejos no piano, ele lá vai à base de arpejos no piano. Se no tema seis, o clarinetista usou a técnica de slap, ele vai usar a técnica de slap e se foi só entre os dois minutos e os três, ele vai fazer isso entre os dois minutos e os três. Não é uma música escrita como estou a fazer para orquestra e é sempre igual porque está escrito, e assim. Não, aqui o que está determinado são noções temporais: onde se entra, onde  se sai, onde se toca, como se toca e que técnica se toca, mas o resto é tal e qual como no disco. É improvisação e eu vou estar a dirigir, vou estar a tocar mas também vou estar a dirigir. Ao estar a dirigir, logo define que é uma improvisação estruturada, ou seja, neste momento já é como se fossem composições e eu vou estar a dirigir composições meta-idiomáticas.

Entrevista – Pedro Corte Real
Fotografia – Nuno Cruz