Numa sexta à noite ou mais precisamente já sábado de madrugada, estava eu de regresso a casa, e saindo na estação correspondente reparo num cartaz com o rosto de Marilyn Manson logo à saída do terminal, pois é o suficiente para me acordar do mundo de fadas e unicórnios em que estava embrenhado após meia hora a dormitar no comboio. Antes, tinha passeado em sonhos pelas terras de Oakland onde todos usavam barba e bonés de pala. Não eram muito faladores e todos tocavam canções slow tempo nas suas guitarras acústicas. Quando eram jovens haviam tocado em bandas de metal e derivados mas agora trabalhavam a terra e sacudiam o pó à mobília. Dedicavam-se à composição de belos temas folk enquanto atrás, no leitor de vinil na fazenda ou no atrelado soavam os discos de Crosby, Stills, Nash & Young.
O concerto de Scott Kelly e de John Judkins no Sabotage, deixou-me uma meia hora antes numa estranha disposição fantasiosa. Chegando a casa fui ouvir um ou dois temas dos Neurosis, a banda que Scott Kelly fundou nos anos oitenta. Enquanto ceava pela madrugada e abria uma garrafa de vinho, senti-me desconcertado pela tarefa de descrever um concerto tão sui generis. Scott Kelly, para além da sua discografia com os Neurosis e de entre outros projectos tais como Tribes of Neurot, tem três discos a solo e se ouvimos nessa noite temas da sua banda de sempre, seria como se fosse tirado de um desses discos. Não é tarefa fácil descrever o concerto que se passou numa hora e pouco no Sabotage. Sim, primeiro porque se disser que não gostei sobremaneira, posso não estar a ser sincero comigo mesmo. A menção anterior a fadas e unicórnios é porque geralmente na tradição mais europeia quando se vai assistir a um concerto acústico podem-se esperar canções que bem que podem ser sobre fadas e unicórnios ou o que for e o cantor ou frontman, até pode falar um pouco com a plateia entre as canções. A coisa não é muito extensa geralmente e todas as pessoas terminam bem dispostas. Assim de repente, o nome Tyrannosaurus Rex de Marc Bolan, surge no meu imaginário e lá quero ir eu ouvir discos todo o fim de semana com fadas, mágicos e Unicórnios. Convenhamos que não é fácil manter uma audiência interessada sem uma banda eléctrica em formato rock por detrás, portanto geralmente é assim que as coisas se passam e um concerto acústico é sempre um momento singular.
Nesta noite nada se passou assim. Para começar, estes dois norte-americanos encontraram uma sala cheia para assistir ao recital, e sim, parece-me adequado o termo. Missa solene também seria adequado. Eu, como um bom apreciador de canções bonitas num palco a uma ou a duas vozes com uma guitarra acústica e mais uma Fender ou um Lap Stell, tinha algumas expectativas elevadas em relação a este concerto em particular.
As duas primeiras canções começaram com uma toada muito lenta, que se manteve até ao final da apresentação (a minha única queixa em relação à prestação). A assistência que respeitosamente enchia a sala, mantinha-se em quase silêncio no decorrer das canções, só se manifestando no final, revelando um imenso respeito pelos dois músicos.
Scott Kelly tem uma voz bastante robusta, forte e melódica. A maneira como vocaliza estas canções é muito segura e a guitarra de John Judkins, seu coadjuvante em palco é tocada certinha sem grandes improvisações e desvios. Tudo é feito com grande profissionalismo e o público, sem dúvida: uns, conhecedores de cada silaba dos seus discos de folk soturna, outros, admiradores ferrenhos dos Neurosis, sorviam com atenção cada acorde que vinha do palco. Eu, pela quinta canção já estava um pouco aborrecido. Se por um lado era bonito o que ouvia, por outro lado, era sexta-feira à noite: – “Vá lá Scott, estás em Lisboa, fala lá com as gentes, que eu estou quase a desfalecer encostado ao balcão do bar, afinal, no final da semana todos merecemos ser um pouco alegrados…”.
Pela sexta música, penso eu, lá veio um: – “que bom estar em Portugal, esta é uma canção de Neil Young”. – E lá ouvimos “Cortez The Killer”, um dos mais emblemáticos temas de Young, cantado com sentimento. Aliás, Scott, tem uma maneira muito particular de tocar e é quase como se dentro de todos os temas existisse um espaço para só se ouvir a guitarra e por vezes a voz, e depois a guitarra. É claro que é um exagero da minha parte mas foi assim que tudo me soava passado um pouco e como complemento, John Judkins faz debitar através do seu Fender reverb amp as linhas de guitarra necessárias. Estávamos a meio do concerto e daí até ao fim, foi um pulo. Lembro-me que os dois últimos temas foram à semelhança da versão de Young, os mais aplaudidos. Saí do Sabotage com a sensação de que: ou assisti a um dos mais interessantes concertos da minha vida, ou, então, aborreci-me um pouco. Ainda não me decidi. Mas não vou discordar se me sugerirem a primeira opção. Os temas são lindíssimos.
Foi um concerto tão certinho, tão profissional, que por vezes desejei que se lhe partisse uma corda para algo diferente acontecer, pois Scott teria então de gracejar com a audiência. Mas se realmente os temas são tão bonitos porque é que haveria Scott de ter que falar com o público? Talvez porque os poderíamos ouvir em casa no conforto do lar, não? Não é bem a mesma coisa – de acordo, mas, por outro lado, ainda bem. Quando eu quiser ver teatro e animação, vou ver o Marylin Manson ou outro número de variedades qualquer. Aqui, encontrei uma modéstia enorme, uma timidez e um sentido de estar. Poucas palavras e que a música fale por si. Nem tudo na folk tem que ser sobre fadas e unicórnios e estes norte-americanos são a prova disso. A solidão e o isolamento são também forças motrizes no processo da criação. São noites como estas que se fazem inesquecíveis pois nem na nossa cabeça conseguimos chegar a um consenso. Sobra claro, a música que é, e que inegavelmente foi, bonita e honesta nessa noite.
Texto – Pedro Corte Real
Fotografia – Ana Pereira | Fenther.net