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Matilde Campilho + Stereossauro, Quando há música nas palavras

Não será bem uma reportagem, também não será uma entrevista. Quanto muito um texto. Até porque as fotografias que tirámos foi do soundcheck do evento e a entrevista foi realizada após o evento que juntou Matilde Campilho, uma das sensações da poesia nos últimos tempos, e o conhecido DJ Stereossauro.

No sábado, dia 27 de Janeiro, tudo aconteceu na Sala de Ensaios do CCB. Inserido no ciclo “Música para todas as infâncias”, juntou-se duas pessoas que nunca se tinham visto até à data. Matilde Campilho e Stereossauro vieram dar vida às palavras com cor, som e alegria.

Este era um evento mais dirigido aos mais novos, ainda assim atraiu essencialmente muitos admiradores e admiradoras mais velhos da Matilde. A premissa definida na sala foi simples. Meia hora de espectáculo e meia hora de perguntas e respostas, num conceito que pretende atrair o público do artista, permitindo criar mais interacção entre as duas partes.

Neste espectáculo/concerto/performance, as palavras da Matilde foram as protagonistas, como a chuva que cai lá fora, a vida maravilhosa que se tem quando as meninas se transformam em mulheres ou os rapazes se tornam homens.

A linguagem da Matilde e os sons de Stereossauro são para os mais novos, mas também inspiram os mais velhos que recordam memórias que estavam guardadas, como se estivessem entranhadas na carapaça de uma tartaruga. E também serve para recordar que foram as tartarugas ninjas o nosso primeiro contacto com os pintores renascentistas italianos. Ou recordar que a nossa capacidade de desenrascanço e/ou criatividade em situações limite apareceu graças ao MacGyver que conseguia fazer tudo “com uma pastilha elástica”.

Peca por escasso o facto do espetáculo ter sido apenas meia hora, já que a cor, a vida (seja humana ou dos peixes), a alegria e a esperança são motes nos poemas da Matilde. Com uma mensagem positiva para crescermos, mesmo quando já não somos assim tão de palmo e meio ou para aproveitar o dia, mesmo quando chove.

A fantasia da escrita é alavancada pelos discos do Stereossauro, que através de melodias e sons mais harmoniosos encontra-se num habitat bem fora da caixa do que aquela que está habituado. Uma coisa é montar um espectáculo para crianças na faixa dos 6-10 anos, outra é preparar-se para tocar às quatro da manhã.

Posto isto, Matilde e Stereossauro colocaram-se prontos para responder a várias perguntas vindas de um público curioso. Desde ensinar ou explicar de forma lata como é que o material de DJ é usado a descobrir quais são as tartarugas ninjas favoritas, foram várias as perguntas feitas aos dois criadores.

Tendo em conta este projecto específico, Stereossauro (nome artístico de Tiago Norte) considerou que teve de se inspirar nas palavras e nos textos da Matilde numa primeira fase, e encarar todo o mood em volta destas. “Parar, pensar e absorver todo o sumo”.

Por sua vez, como é que é o processo de escrita de Matilde? Sendo um “trabalho como os outros, mas sem horário de entrada e saída” é um trabalho que ocupa todo o tempo, já que está em constante criação. Salienta a importância da solidão como forma de se concentrar e também o facto de riscar constantemente os seus textos “nem que seja para compreender o que escreveu antes”. E afirma: “Escrever só se desdobra em ler”, referindo a importância também de estar sempre a ler para criar.

Outro pormenor interessante que a Matilde Campilho partilhou nesta curta Q&A foi a presença da música na escrita. “Por vezes repito 10 vezes a mesma música, para conseguir escrever qualquer coisa”. Até foi algo que a estimulou a escrever para este desafio proposto pela Madalena Wallenstein, curadora do evento.

Neste projecto, tirando o poema do Peixe-Lua, todos os textos foram originais, tanto que por parte do público, se levantou a questão do público: “para quando um novo livro?”. Ao que a resposta ficou: “Para breve.”

No final, fomos para os camarins onde se realizou uma pequena entrevista com os artistas para descobrir como foi trabalhar neste projecto e também conversar um pouco sobre as suas vidas profissionais.

Música em DX (MDX) – O que é que acharam deste concerto? O que acharam deste conceito?

Stereossauro – Para mim foi muito giro e é totalmente fora da minha zona de conforto, do meu ambiente musical normal. É muito mais barulho, mais batido, mais “barulho das luzes” e nesta proposta tenho de fazer o processo inverso, “menos, menos, menos”, “travar, travar, travar” e às vezes o oposto de “quantas músicas consigo por em 10 minutos, consigo pôr 10 músicas? Consigo pôr 15 músicas, e não chega a um minuto cada uma”. Neste caso é o processo oposto, mas acabo sempre por tirar coisas válidas para todo o resto que faço. É muito isto que serve sair da tua zona de conforto. Para ter uma experiência nova.

MDX – E então como é que foi a vossa reacção quando vos propuseram este desafio? No início do espectáculo, disseram ao público, que vocês nem sequer se conheciam.

Matilde – Não nos conhecíamos de todo. Estávamos a falar disso há bocado. Agora vimos que os nossos trabalhos tocam-se muito, não é? O meu tipo de poesia tem muito a haver com o ritmo, com a batida, e portanto foi um grande desafio começar a fazer isto. Mas quando nos fizeram esta proposta eu acho que os dois pensaram assim: “O quêêêê??” Mas foi muito rápido, muito rápido. E pelo que temos falado, os dois temos a mesma coisa, isto é abrir em vez de fechar. Bora lá juntar as coisas, ganhas um público diferente, e depois tinhamos essa coisa de que o público era diferente tanto para um como para o outro. 

Stereossauro – Exacto! Às vezes há essa cena das parcerias de: “olha, bora vamos tentar juntar o teu ao meu”. E aqui não. 

Matilde – O público eram crianças. 

Stereossauro – Aqui a primeira reacção foi: Bora! Porque já fiz várias coisas não deste género, mas que fogem à minha zona de conforto. É um pouco estar a repetir, e aceito sempre. Sim e depois penso como vamos fazer. Mas para já digo que sim e logo tentamos resolver.

MDX – E qual foi o vosso ponto de partida e as vossas inspirações?

Stereossauro – O ponto de partida foi a poesia da Matilde.

MDX – Matilde, também tiveste de reinventar. De escrever tudo de novo. 

Matilde – Tive de escrever tudo de novo, mas ouvi umas coisas dele. Ele não sabe, mas eu ouvi no youtube, para tentar perceber para onde tinha que ir, e saber que é sempre surpreendente. Porque isto que ele faz todos os dias é novo. E ele depois vai adaptar a batida dele ao texto. Portanto, foi um encontro de tentar adaptar a uma coisa ritmada e perceber que ele se adaptou ao ritmo que eu tinha pensado. Portanto foi um circulo.

Stereossauro – O primeiro passo teve de partir da Matilde, porque sempre que falamos de música e voz, sempre que há voz, a voz tem o protagonismo principal, a menos que seja uma coisa abstrata, com sons sem ser com palavras, é mais uma coisa musical ou um discurso cognitivo. Por isso como é algo muito direto com as palavras, ganha protagonismo.

Tive que tentar perceber para onde é que ela ia, que palavras e que sentido é que essas palavras iam ter, para eu obviamente, antes de começar decidir “não vou por heavy metal”, “não vou pôr algo denso”, apesar de haver algumas coisas algo densas, mas que acabaram por resultar. Mas tentar não colocar algo preenchido para não tirar espaço para a palavra. E como à partida seriam palavras que não se iam repetir, que não é como a letra de uma canção, em que podes ter uma primeira parte e um refrão que se repete. À partida não se repete as palavras, tem de ter uma atenção de início ao fim. Para perceber o significado todo do texto.

MDX – De certa forma, vocês já responderam a isto no período de perguntas no concerto. Matilde, tu costumas ouvir música para criar os teus poemas? E tu [para o Stereossauro] costumas ler alguma coisa antes de criar alguma música?

Stereossauro – Eu influencio-me em tudo. Ao início, quando estamos a fazer música eletrónica, é muito à base de experiência e resulta alguma coisa. Mas já há muito tempo que não faço nada sem ter uma ideia primeiro. Primeiro penso, quero transmitir esta ideia, esta sensação, ou este tema e só quando tenho esta baliza definida é que penso como vou exprimir. Basicamente, é muito raro fazer uma coisa random só porque sim.

Tenho de ter um motivo qualquer ou um sample, mas tenho de ter um assunto. Música é uma arte, tens de transmitir uma emoção, uma ideia, claro que toda a gente é livre de fazer como quiser. Há-de haver músicas interessantíssimas se calhar na dança, instrumentais, ou por exemplo de techno, que não tem uma palavra, uma ideia concreta muito definida. Mas conseguem ter uma emoção. Há músicas techno alegres, tristes. Agora se a pessoa que a fez, fez com essa intenção, já não sei. Mas o processo passa por definir e depois é fácil.

Matilde – Sim, também. Mas não só. Eu deixo-me ir na batida do que na letra. Por isso é que gostei tanto deste desafio. É mais a batida que me deixa ir. Às vezes pode acontecer uma palavra ou uma coisa que me desperta. Nada nasce do nada. E portanto, tudo o que escrevo, nunca passa impune às coisas que li, às coisas que eu ouvi, às coisas que as pessoas me disseram… é impossível. Aquelas pessoas que dizem: “eu escrevo tudo ficção, não tem nada haver com a minha vida”. Claro. Eu faço ficção, mas é inevitável que tudo é influência. Pois posso escrever sobre outra coisa com nada que tem a haver com o que no momento estou a sentir, mas tem haver com que outros pensaram e estão a sentir e isso fez juntar as peças do puzzle.

E a música é só mais uma dessas peças. Mas como eu digo, é mais pelo ritmo e pelo comprimento. Muitas vezes eu estou a escrever e a coisa vai vai vai… e de repente a música já acabou. E eu penso: “vou fechar isto porque senão ficava aqui até ao fim dessa estrada.” Tem de ter um fim. Porque a poesia, se tu pensares – na música também não, tens música de 2 minutos e músicas de 20 minutos – mas normalmente quando vais atuar tens de ter umas balizas. Na poesia não tens balizas mas tens de as pôr. E muitas vezes a música ajuda-me. Se ouvi três vezes esta música é que a música já está no fim da estrada. 

MDX – Uma das coisas que poderá ser semelhante ao que aconteceu no concerto eram os “video poemas” que tu tinhas. Tens saudades de fazer?

Matilde – Não, nenhuma. [risos] Isso é muito engraçado, porque as pessoas chamam video poemas e isto é antes de eu publicar, quando eu vivia no Brasil. E epá, eu sempre fui contadora de histórias, mesmo quando não escrevia. A coisa de escrever vem depois de eu querer contar histórias e eu para não chatear as pessoas: “Olha! Quero contar uma história!”. Eu escrevia e depois quem quisesse ler, lia. E uma das coisas que acontecia era que o fuso horário é outro. São quatro horas. E portanto eu gravava. Depois, como sempre gostei de música e tinha ligação… Nessa altura eu trabalhava em televisão, portanto trabalhava com edição… Já havia esta coisa dos telemóveis que a gente vai filmando umas coisas, aquilo surgiu naturalmente que era como se fosse um postal, por eu queria contar coisas às quatro da manhã. Às quatro da manhã está tudo a dormir! Então fazia aquilo, subia no youtube e depois mandava para os meus amigos.

O que é acontece? Deixei aquilo público. Porque não sabia… E depois no Brasil aquilo saiu-me. Foi mesmo estúpido [risos]. Mas depois foi: Tipo, erro. Segue. [risos] E pronto, aquilo foi um momento específico. Depois as pessoas é que puseram o nome de video poema… E eu chamo-lhes mais “postais para casa”. Mas era aquela altura. Acabou.

MDX – E voltando a um desafio que vos lançaram no período de perguntas. Já chegaram a pensar voltar a repetir esta parceria?

Stereossauro – Agora também é um pouco cedo…

Matilde – Sim, isto acabou de começar!

Stereossauro – Parece que estás a pôr uma pedra e a tirar uma pedra.

Matilde – Ainda agora começou um caso e já estás a perguntar se querem casar! É tipo isso! [risos] Estamos só a curtir!

MDX – Então reformulo. Gostavam de repetir?

Stereossauro – Uma das coisas que fiquei a ganhar é o contacto com uma pessoa com a qual eu me relacionei muito rápido com a escrita, o que para mim é raro, eu já nem sei qual foi o último livro que li. Geralmente leio muitas revistas técnicas, que são grandes testamentos e manuais ligados à música. E relacionei-me muito rapidamente com a escrita dela. Percebi logo que tinha ritmo e eu nunca tinha lido um texto à procura de ritmo. Nunca surgiu esse problema para resolver, e como trabalho com muitos vocalistas que são intérpretes.

Matilde – Todos os acontecimentos têm um princípio de caminho.

Stereossauro – Não quer dizer que volte a fazer este espectáculo, mas não quer dizer que volte a trabalhar ou imagina que precisas de uma música. Que voltas a fazer aquilo que estavas a dizer, video poemas.

Matilde – Não era eu que dizia isso, eram os outros… [risos]

Stereossauro – Imagina que voltas a fazer um espectáculo deste género, mas sozinha. Em que basta teres uma máquina ao lado que carregas e pedes olha: “Dá-me aí duas ou três músicas”, e eu nem sequer preciso ir.

Matilde – É o principio de uma parceria, que é o bom do mundo dos dias de hoje. As coisas não são fechadas.

Stereossauro – Epá, se tivesse dado mal, a gente não estaria a dar esta entrevista! Já estava a arrumar a minha mochila e tipo xau. Foi fixe, resultou bueda bem. 

Matilde – E humanamente resultou muito bem, conheci novas pessoas.

À saída do CCB, recordei uma das citações de um dos poemas da Matilde que referia que um fim pode ser um novo começo. E foi isso que vimos.

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Texto – Carlos Sousa Vieira
Fotografia – João Rebelo