Quando nos dedicamos à árdua tarefa de tentar gizar uma cronologia de como é que esta coisa do Metal começou e se desenvolveu, há sempre uma série de referências que vêm à baila: desde o Blues Rock tosco dos Blue Cheer às seances macabras de Arthur Brown, do Hard Rock musculado dos Deep Purple e dos Led Zeppelin às experiências com distorção de Link Wray ou mesmo dos The Kinks, dos Beatles ou dos The Who. Nenhuma delas, todavia, rivaliza com a forma com que os Black Sabbath escancararam as portas do Inferno e registaram em áudio a substância de tudo o que é negro e vil. Como Roma, o quarteto de Birmingham é onde todas as conversas vão dar neste tipo de discussões, mas focarmo-nos somente em Iommi e companhia é limitativo, especialmente se deixarmos os seus vizinhos Judas Priest fora da discussão: É que se os primeiros desencantaram a essência de que o Metal se faz, os segundos foram os alquimistas que a refinaram e ajudaram a tornar naquilo que veio a ser, e Stained Class é o seu mais importante pergaminho.
Lançado em 1978, Stained Class chegou numa altura quando futuros gigantes do género como os Iron Maiden e os Saxon ainda estavam a lançar demos, a New Wave Of British Heavy Metal a dar os primeiros passos, os Motörhead apenas com o álbum de estreia nos escaparates e a fase Ozzy dos Black Sabbath a entrar em fim de ciclo com o ironicamente intitulado Never Say Die!. Já com três álbuns debaixo do braço – e dois deles, Sad Wings of Destiny e Sin After Sin, clássicos por direito próprio – os Judas Priest aproximavam-se dos 80’s numa fase de maturação apenas rivalizada por alguns dos seus conterrâneos, como os Rainbow ou os já mencionados Deep Purple e Led Zeppelin. Só que, ao contrário destes três, e não obstante a sua importância, o quinteto liderado por Rob Halford havia de ser o verdadeiro responsável por colocar em cerca de 44 minutos o diagrama para como se fazer Heavy Metal e que, passe algumas marcas da idade, continua a reter toda a sua actualidade relativamente ao que se escreve hoje em dia, 40 anos volvidos.
São vários os ventos de mudança a perfumar este disco: desde o novo logótipo, substituindo o antigo em Blackletter pelo de cariz mais metalizado que até hoje perdura ou a capa algo psicadélica/avantgarde, até à entrada de Les Binks, baterista que apenas estaria de passagem na banda mas que aqui assina uma clínica de técnica e criatividade que apenas seria rivalizada por Scott Travis, 12 anos depois. No entanto, a beleza de Stained Class assenta no facto de ser simultaneamente uma continuação lógica e uma pedrada no charco para os Judas Priest, uma ruptura sem romper, assumindo-se com um álbum de transição que não tropeça nem sente as dores de crescimento que este tipo de LP’s costumam denotar. Nada aqui surge em contradição aos seus predecessores, mas, ao aguçar a composição e filtrar as influências Blues que os acompanhavam desde os tempos de estreia com Rocka Rolla, os cinco elementos da banda, que pela primeira vez assinaram todos eles contribuições, escreveram o seu disco mais focado e polido até à data.
Por um lado, Stained Class não soa datado, porque este tipo de produção de cunho analógico mais quente e redondo envelhece bem, mas soa a um álbum de Metal produzido nos anos 70, ou seja, sem o carácter acutilante e glossy de edições futuras. Por outro, é na escrita que, apesar ainda manterem uma costela Rock, esta obra abriria as portas a uma revolução para a banda – mesmo contando Beyond the Realms of Death como uma balada, este é o seu primeiro álbum onde as influências Folk que permeiam temas anteriores como como Dreamer Deceiver ou Last Rose of Summer estão ausentes, não querendo isso dizer que Stained Class não respire. É, contudo, com a entrada fulgurante de Exciter que começa, tour de force olímpico e declaração de intenções que suplanta a anterior Sinner como referência para os temas de abertura que a banda escreveria a partir de então. Sem voltar a igualar a intensidade dessa canção, o restante álbum segue a batuta de intercalar riffs memoráveis, técnicos q.b. sem sacrificar imediatismo, com dinâmicas inteligentes entre a profusão instrumental e a estrutura pop eficaz – nisso, este link explica bem porque é que Saints in Hell é o arquétipo da música de Metal perfeita.
Não é que os Judas Priest não tivessem já demonstrado agressividade ou nunca tivessem escrito épicos, mas é aqui onde toda a experiência acumulada se manifesta numa prestação consistente, sem filler. De resto, escolher grandes momentos do álbum é jogar com dados viciados, ganha-se sempre. A passada demolidora de Savage, o trabalho entrecruzado de guitarras nos solos da faixa-título, a postura que num ápice passa de confiante para ameaçadora na mudança verso-refrão de White Heat, Red Hot, o ritmo estilo-motorik-em-esteróides de Invader – que soa aos Hawkwind se estes fumassem menos ganzas e passassem mais tempo no bar – ou a ginga num dos melhores riffs de todo o álbum em Heroes End. Tudo isto rematado pela voz de Rob Halford, qual calda de açúcar sobre pastelaria fina, expressiva e tecnicamente exemplar dos momentos mais graves aos mais agudos em falsetto e que atinge o apogeu em Beyond the Realms of Death, possivelmente a melhor prestação da sua carreira.
Este tema merece um parágrafo à parte porque está, a par de Victim of Changes, como uma das melhores, senão mesmo a melhor, canções que os Judas Priest compuseram. Se a primeira é um lamento por uma relação de amor que sucumbe ao álcool, Beyond the Realms of Death troca o miserabilismo Blues por uma postura mais clássica, de inspiração quase helénica, na jornada de um homem ao Hades da depressão e da morte em sofrimento. Os seus quase 7 minutos carregam uma toada elegantemente lúgubre coroada com o solo dual de K.K. Downing e Glenn Tipton e os gritos de banshee de Halford. Curiosamente, este e o momento menos “metaleiro” do álbum, a funky Better by You, Better than Me (cover do original dos Spooky Tooth), ambos partilham a responsabilidade de ter colocado a banda no centro de uma controvérsia por suspeitas de conter mensagens subliminares de incentivo ao suicídio que, supostamente, levaram dois jovens a tentar acabar com a vida em 1990 (um deles com ou sem sucesso, dependendo da perspectiva). A banda foi levada a tribunal pelos pais das vítimas e foi ilibada, claro, porque aquilo que um grupo musical quer mesmo é acabar com a sua base de fãs.
Já que se fala de letras, e como foi previamente mencionado, este é o último álbum de uma era para os Judas Priest, mas não só em termos sonoros. Lançado antes da auto-mitificação reivindicadora do seu estatuto de deuses do Metal, Stained Class tem uma abordagem lírica bastante mais cerebral. Isso manifesta-se na abordagem de tópicos como o colonialismo (Savage), o preço da fama no mundo da música (Heroes End), a escolha da morte sobre a vida (Beyond the Realms of Death) ou a corruptibilidade do Homem (Stained Class). Contudo, a lógica escapista e divertida de que se faz o Heavy Metal não naufragou num mar de seriedade, havendo também lutas de anjos vingadores (Saints in Hell), visitas alienígenas (Invader) ou histórias espectaculares de personagens sci-fi (Exciter), com esta última a continuar uma espécie de padrão já encetado em Starbreaker e que a banda replicaria doravante em The Sentinel, Electric Eye ou Painkiller.
Daí em diante, os Judas Priest cobrir-se-iam de tachas e cabedal para Killing Machine, lançado ainda no mesmo ano, que assumiria uma viragem estilística que se estabeleceu em pleno com British Steel, de 1980. Esse foi o início de uma década de sucessos de vendas, estádios cheios e singles com boa rotação das rádios, pautada pela inconsistência entre bons álbuns e algumas tentativas mais ou menos óbvias de aceitação comercial (de fraca qualidade, regra geral, mas com uns quantos malhões). Este percurso culminou em Painkiller, ode ao excesso de riffs e solos orgásticos que viu os Judas Priest puxar pela intensidade de tal forma que causou uma implosão na banda e levou Rob Halford à saída, encerrando um ciclo. Esse LP de 1990 pode ter sido aquele que os cimentou como A banda de Metal (no sentido estereotípico do termo), mas foi com Stained Class que os rapazes de Birmingham atingiram toda a sua maturidade. Quarenta anos depois, é daqueles que soa cada vez melhor com a idade e de audição obrigatória para toda a gente que queira, pelo menos, perceber com é que esta coisa que amamos chamada Heavy Metal se formou.
Texto muito, muito levemente adaptado de um artigo publicado pelo mesmo autor a 2 de Fevereiro de 2012 no Espalha-Factos. O autor insta mesmo o/a leitor(a) a comparar os dois e dar-lhe o seu feedback, para perceber se em 6 anos aprendeu alguma coisa ou ficou na mesma.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Judas Priest