Os The Gift não são estranhos nas nossas vidas. Quando em 1998 apareceram com Vynil considerámos este momento como uma lufada de ar fresco, a esperança que nesses já distantes anos 90 a música portuguesa poderia também passar por registos idênticos aqueles que nos acompanhavam durante a adolescência provenientes de outras bandas estrangeiras.
A música alternativa e independente não tinha naquela altura grande expressão no mercado, ou era de difícil acesso – a liberalização da internet no nosso país dava os primeiros passos, e plataformas como o Audiogalaxy vagamente conheciam as nossas bandas. Foi aqui que nos tornámos fãs desta na altura desconhecida banda de Alcobaça. Poucos anos mais tarde, em 2001, aparecia Film, o segundo álbum da banda, e aqui era a certeza do que procurávamos há tanto tempo. AM-FM em 2004 confirmava os The Gift como uma certeza em Portugal que afinal a banda já não era “só nossa”. Desde então, confessamos, desligámos-nos da banda. Não julgamos percursos tomados por ninguém, mas o seu caminho deixou de nos cativar.
Como em tudo o resto, também na música a vida é cheia de surpresas, ocasiões, e quase que como acidentalmente nos cruzámos com os The Gift na edição de 2017 do Festival Super Bock Super Rock. Num dia dedicado ao hip-pop onde Slow J tinha sido Rei, também o “encaixe” da banda no cartaz deste dia pareceu acidental, que acabou por resultar numa frustrante confirmação de que o percurso de The Gift nos continuava a fazer confusão. Na altura escrevíamos “Se vertermos num receptáculo os seguintes ingredientes: um, palco desproporcional à banda; dois, apresentação de músicas ainda pouco conhecidas do novo álbum; e três, uma sonoridade que pouco tem que ver com aquele dia, o resultado final nunca poderá ser satisfatório. Tecnicamente pouquíssimo haverá a apontar à banda, que ofereceu um espectáculo competente, mas face às circunstancias nem toda a experiência e suor de Sónia Tavares fizeram milagres.”, o que na prática correspondia à imagem que tínhamos da banda. Competente, profissionalíssima, com um percurso respeitável de 23 anos de carreira, mas, onde algo não nos continuava a fazer sentido.
Todas as relações “complicadas” têm os seus momentos de reconciliação, ou tentativa de, e quando nos decidimos cruzar de novo com a banda tínhamos em mente de que esta seria a oportunidade do “agora ou nunca”, do “live or let die”. Por um lado, perceber se “Altar” teria atingido o ponto ótimo de maturidade depois de uma frustrante tentativa no verão passado, por outro, se os The Gift mantinham connosco alguma chama que se pudesse reacender. Em conversa antecipada a este concerto, a banda confessava-nos em entrevista que este dia seria, mais do que uma apresentação de Altar, “23 anos de música alinhada da maneira que melhor servir os espetáculos”. Estava dado o mote para uma oportunidade final, para quem eventualmente pudesse reatar uma relação já duradoura.
Assim fomos ontem, de mente aberta para receber o que os The Gift nos teriam para dar, para o Coliseu dos Recreios em Lisboa sabendo que a noite anterior no Porto tinha sido um verdadeiro sucesso. Assim que entrámos no Coliseu percebemos que poderia ser especial, o público enchia a sala e estava com a banda. Tinha tudo para não ser mais uma noite como a de 14 de Julho 2017. Era uma noite The Gift, com os seus fãs, os mais recentes, e os dos primórdios como nós. Afinal íamos ouvir não só um “Altar” já amadurecido de 1 ano de concertos, mas também reviver toda a história da banda desde o primeiro álbum em que muitos “achavam que a vocalista era um homem” – confissões de Sónia Tavares entre músicas de ontem.
Como primeira parte, a banda convidou IAN, cantautora e violinista russa (primeira violinista da Orquestra Sinfónica do Porto), radicada em Portugal e na cidade do Porto há vários anos, naquela que foi a sua estreia a solo neste par de concertos no Porto e Lisboa. Numa prestação curta que durou cerca de 20 minutos, deixou-nos o interesse para ver e ouvir mais no futuro próximo.
Terminado o concerto de IAN, inicia-se de imediato em palco um temporizador decrescente de 15 minutos. Seria o tempo necessário para nos prepararmos para os The Gift.
Terminada a curta pausa, o concerto da noite começa por volta das 22h15 com um vídeo de várias frames de filmes e séries de referência nas nossas vidas dos últimos 23 anos, onde não faltaram os The Simpsons, onde todos mencionavam a frase “The Gift”. Estava dado o mote para o inicio.
Mal sabíamos nós que “Lost And Found” era o inicio de uma noite especial. Num alinhamento diferente do concerto do Porto, a noite continuou de imediato com mais temas de “Altar” como “Vitral” ou “Big Fish”, altura em que Sónia Tavares informa o público que o concerto está a ser gravado e lhes pede toda a força para que as suas vozes se oiçam também na gravação. Era a altura dos fotógrafos deixarem o fosso, e entregassem a banda de corpo e alma ao Coliseu. Mais temas do novo álbum se seguiam com “Malifest”, começando depois o desfile pela história com “Doctor” e “Race Is Long” em que Nuno Gonçalves se engana no arranque e Sónia, aproveitando a pausa, confessa ao público ser a sua preferida do álbum “Explode”. “Guess Why” (AM-FM), “Song For A Blue Heart” (Film), “Primavera” (Primavera) ou “OK, Do You Want Something Simple” (Vynil) para regressar a “Altar” e a “Love Without Violins” (com Brian Eno) ou “Clinic Hope”, foi a forma de recordar 23 anos de carreira que já ninguém lhes tira.
Carreira sólida e consistente que, apesar de não agradar a muitos que se transformaram em haters da banda, é honestamente de admirar. Não são muitos os exemplos de bandas portuguesas que conseguiram sobreviver aos sinais dos tempos sem interrupções e reedições de álbuns anteriores de sucesso, e só por isto é de assinalar.
A banda sai de palco sem avisar, e regressa para um primeiro encore com “You Will Be My Queen” (Altar). A banda despede-se mas, o público já rendido há muito, exige que se regresse para um segundo encore com “Fácil de Entender” (Fácil de Entender) a dois no palco (Sónia Tavares e Nuno Gonçalves).
“Question Of Love” (Fácil de Entender) fechava uma grande noite de reconciliação para muitos, nós incluídos, com estes The Gift que merecem a maior salva de palmas que tiveram direito já perto da meia noite e meia lisboeta.
Texto – Carla Santos
Fotografia – Luis Sousa