Os Arcade Fire são aqueles amigos de toda a vida. São um casamento indígena, em que o testemunho dos deuses nos une para a eternidade. São aquelas pessoas tão profundamente boas, que mesmo que possam eventualmente cometer um deslize, tu sabes que irás perdoá-las sempre. A comunhão que existe com o público é tão maravilhosamente profunda, que nos toca as vísceras.
Um ringue de amor, que transbordou energia electrizante pelos 4 lados do palco. Os 360º de visão foram, por sí só, um sentimento de unificação entre eles e nós. Um ano passado do lançamento do último e quinto álbum, “Everything Now” e quatro anos de “Reflektor” os pais do indie assumem uma identidade inigualável no mundo da música. O apadrinhamento de David Bowie à família de canadianos que resolveu comprar uma capela e fazer dela um estúdio, ficou inscrita na história da música. Hoje a família de Monte Real é a banda indie-rock-pop, o que lhe quiserem chamar, mais honestamente fiel ao evoluir dos ritmos e das tendências sociais. Sátiras engenhosamente trabalhadas à sociedade de consumo imediato, (re) invenções de ritmos onde a diversidade de instrumentos orquestram melodias perfeitas.
A Praça de Touros do Campo Pequeno em Lisboa transformou-se na passada segunda-feira numa espécie de santuário, em que a devoção a Infinite content (nome desta tour) provocou uma verdadeira transcendência aos devotos que por ela foram abençoados. Após uma crítica de fracas estrelas a “Everything Now”, os Arcade Fire produziram uma tour de filigrana perfeita. Um alinhamento arrebatador, que conseguiu contar o percurso irrepreensível da banda, onde Win Butler, Régine Chassagne e os restantes músicos deixaram knock-out os mais céticos no primeiro round .
Entrada triunfante de Everything Now, faixa que dá nome ao último álbum, seguido de um dos temas mais fortes da banda Rebellion (lies) do primeiro CD “Funeral” (2004). Os écrans que acompanhavam as 4 faces do ringue projectavam imagens meticulosamente escolhidas, intercaladas com a dos músicos. Put Your Money on Me, onde slot machines e muitas notas de dólar sobressaiam nas luzes coloridas dos casinos, ou em The Suburbs numa simulação de cartaz de apresentação de espectáculo onde liamos “Arcade Fire presents:”. Os pormenores multiplicavam-se no espaço, o que por vezes tornou difícil captar todos ao mesmo tempo. Exemplo disso foram as saídas de Butler e Régine para meio do público ou para as bancadas. Ou ainda a frequente mudança de roupa de Régine, como no tema “Electric Blue” em que em movimentos de uma doce boneca vestia um blusão com capucho azul brilhante.
Um dos momentos épicos foi em Neighborhood, um crescer orquestral majestoso de instrumentos, sob luzes ténues e imagens a preto e branco dos músicos nos ecrans. Sem tempo para nos recompormos de emoção em dose tripla, The Suburbs e Ready to Start, chegaram numa explosão estonteante de energia. Num compasso de espera Régine saiu do palco e regressou vestida com “Reflektor Sem pausas, After Life numa imensidão de estrelas que tornou esse momento dos mais marcantes da noite. Antes do encore ainda fomos agraciados com Creature Comfort e Neighboorhood#3 que nos deixou em êxtase, não sabendo nós ainda o que nos esperava.
O regresso da família ao ringue foi indescritível. No final do primeiro tema do encore, We Don´t Deserve Love, subiram ao palco alguns os músicos norte-americanos (New Orleans) que os acompanham nesta tour, Preservation All Jazz Band. O tema de abertura, Everything is not Now, foi tocado segunda vez com um reforço expressivo de instrumentos de sopro. E uma vez mais sem pausas, o penúltimo tema da noite o hino Wake Up. Quando terminaram, ainda em palco, o saxofone recomeçou a música. Enquanto abandonavam o palco, todos os músicos saíram em fila indiana a tocar um instrumento e a cantar a plenos pulmões, com e entre o público, o inconfundível refrão de Wake Up! De repente, quase a desaparecerem e sem nos darmos conta, Win Butler começa a cantar “Rebel, Rebel” de David Bowie e todos os músicos o acompanharam. Conseguíamos ver através dos ecrans que entravam no backstage e continuavam a tocar e a dançar. Os ecrans desligaram-se e Take a Walk in a Wild Side de Lou Ree começou a tocar. Era hora de nos irmos embora. Esta noite os Arcade Fire fizeram um pacto com o público, em comunhão para a eternidade.
Texto – Carla Sancho
Fotografia – João Pedro Padinha | Everything Is New