Na terceira noite de comemorações do 5º aniversário do Sabotage, esse clube de excelência que precisamente há meia década atrás abriu as portas na Rua de São Paulo, na zona do Cais do Sodré e que a passos firmes se tornou não só uma casa de referência na noite de Lisboa, como também é parte importante no roteiro das digressões europeias de tantos artistas que por aí andam e, numa primeira escolha para tantos projectos nacionais apresentarem o seu trabalho, apetece-me ao escrever estas linhas em jeito de introdução a esta reportagem reflectir no porquê de o Sabotage antes de existir já fazer tanta falta e no porquê de ser tão essencial a sua existência. Não há nenhum espaço com estas características em Lisboa, é simples. Um espaço onde a gerência está atenta aos horários, ao ambiente que se gera lá dentro, ao som que proporciona aos seus clientes e aos artistas que pisam o palco, e, ou, aos DJ´s que animam a noite.
Entrei para ver primeiro Ricardo Remédio e depois os The KVB (e haveria um Clubbing com quatro DJ´s que estariam de serviço), como poderia ter entrado para ir ver outra coisa qualquer. Nem me preocupei com os DJ´s designados, não que sejam secundários. Ir ao Sabotage é a garantia de que o som é de excelência e de que as coisas estão sempre na mesma e ainda bem que estão. Sei sempre que a música tem qualidade e que antes dos concertos o que sai da cabine, está sempre num volume nem muito alto nem muito baixo o que nos permite falar com os amigos que encontramos enquanto nos dirigimos ao bar para encontrar sempre um atendimento eficaz. Aliás, esta deve ser a única casa que mesmo muito cheia nunca tive que esperar mais do que um minuto para pedir uma bebida e a ter logo ali à minha frente. Tudo está sempre na mesma: a iluminação, o espaço, é como uma fotografia repetida dele mesmo, e assim o é, sempre, ou seja, com todas as condições para uma noite agradável. O atendimento é tão eficaz que chego a perguntar-me se não deveríamos clonar a equipe toda e colocar os clones a trabalhar numa qualquer repartição de finanças. As pessoas iam pagar os impostos mais contentes. E não é que sejam simpáticos como a senhora da mercearia ao lado de casa, não é isso, é, que tudo funciona. Tal consistência ou constância como preferirem é rara num espaço ao longo de cinco anos. Fica feita esta homenagem.
Ia portanto dizer que Ricardo Remédio, sim, obviamente um artista português, entrou em palco e eu não vislumbrei nenhuma folha de set-list, não deveria ser necessário uma vez que as músicas discorreram algumas sem interrupção entre elas. Ricardo Remédio entrou no palco e já a sala estava muito bem composta para o ouvir a ele e ao baterista que o acompanhava. De um lado, o baterista e do outro Ricardo e a sua mesa com três ou quatro “brinquedos”, um teclado/sintetizador e mais umas máquinas. Não vislumbrei o habitual laptop de circunstância nestas ocasiões o que quer dizer que Ricardo prefere mexer mesmo nos botões e nas teclas em vez de utilizar backing tracks. Para mim, já está a ganhar pontos. Não vou aqui enganar ninguém, consegue-se perceber quais as máquinas que estão a emitir os sons, vislumbrando o seu manuseamento, mas com a excepção, do teclado eu que por exemplo até sei como uma loop station funciona, o processo de manipulação de sons que ele utiliza não é a minha especialidade, mas parece-me uma mais valia que a coisa seja feita no regime mais ao vivo possível. E o som que sai é sempre diferente do som de um computador, tem mais calor, tem mais profundidade. De salientar aqui a maravilhosa interacção com o baterista João Vairinhos que impunha um ritmo explosivo e muito dinâmico a todos os temas.
A segunda, ou vamos já na terceira mais valia é precisamente o papel de maestro que Ricardo tem na execução desses temas embora se perceba que tudo está perfeitamente bem oleado entre os dois músicos em palco. Sendo portanto instrumentais, as músicas apresentadas têm uma clara ambição atmosférica e a ausência de uma voz, mesmo se excluirmos as vozes sampladas muito discretas que se fazem ouvir no antepenúltimo tema da noite não é um grande problema, mesmo para um ouvinte como eu que pessoalmente prefere ter sempre essa componente no que escuta. Outra mais valia nesta apresentação foi quanto a mim a escolha de sons que são muito similares e personalizados marcando um estilo muito vincado. O ouvinte é transportado a ver um filme a preto e branco e não tem interrupções a cores pelo meio. Não sei que outra figura de estilo possa utilizar para descrever. Acabei por perceber que existe um forte componente shoegaze na música que ouvimos, só que, sem guitarras. Algumas destas músicas por exemplo, poderiam até chegar a ser tocadas por bandas como os Slowdive caso lhes tivessem roubado as seis cordas. São temas que voam, e batem com força. Dois músicos muito competentes em palco: Ricardo Remédio muito personalizado na escolha de sons e João Vairinhos, um excelente baterista.
De seguida, o segundo concerto da noite: The KVB. Sala cheia para receber este duo inglês que não necessita de apresentações. Foi tudo como se esperava, os teclados de Kat Day a cobrirem os temas todos com graves potentes, a voz de Nicholas Wood a debitar as letras com o seu timbre caracteristicamente apagado mas com chama, as pessoas sabem ao que vêm pois o contentamento é geral. No segundo microfone ouvia-se a espaços os coros de Kat que sempre atenta ao que o companheiro fazia na guitarra nunca falhava nos teclados. Por detrás dos músicos as projecções escolhidas davam outra cor ao palco do Sabotage, e desta vez a cor foi o verde claro, quase amarelo, em projecções que inundavam o set de um psicadelismo visual discreto mas sempre presente. Ainda cantava na minha cabeça o genial “Never Enough” música que é tão curta e tão eficaz no dia a seguir ao concerto, é aquele momento em que as sinergias da banda e do público se unem por completo, perto do final do set todos querem ver e sentir o que se passa em palco, é o hino que convém a uma banda indie. Se os irmãos Reid (The Jesus and The Mary Chain) em hipótese tivessem começado a fazer música nesta década, talvez soassem a algo assim (dispensando os mil bateristas e baixistas com que já tocaram), fariam tudo sozinhos, e não estariam talvez muito longe do que este duo faz.
Canções como “Lower Depths” ouvidas logo ao princípio ou a mais velhinha “Always Then” são exemplo disso mesmo, uma linguagem minimal que nos prende onde os versos se misturam com uns semi-refrões. Aliás, basta ver a escolha da versão apresentada ao vivo de “Sympathy for the Devil” dos The Rolling Stones para perceber que preferem canções onde não existem refrões mas sim frases ou pedaços de frases que são repetidas mecanicamente e ficam na cabeça do ouvinte. A meio do set ouvimos Nicholas dizer que iam tocar um tema novo e, nem se deu ao trabalho de o apresentar, esta atitude displicente só lhe fica bem, até porque a dita canção soou muito bem e faz prever um bom futuro para este duo. Num mundo onde o indie está outra vez na moda, são estas bandas com um som próprio e muito vincado que vão sobreviver. Para já, que ainda vamos em Maio, para quem vos escreve estas linhas, este foi dos concertos do ano. Parabéns Sabotage. Obrigado por esta noite.
Texto – Pedro Corte Real
Fotografia – Luis Sousa