Uma das felicidades da ligação entre Portugal e Brasil é o facto de partilharmos a mesmo idioma. A história cruza-se uma com a outra. Sentimentos interligam-se. Temos a saudade na ponta da língua. E podemos sentir de igual forma ou mais Chico Buarque. Após longa ausência, ele voltou a Portugal. Trouxe as Caravanas atrás, e esgotou duas noites no Porto e quatro em Lisboa. Assistir a um dos concertos é sentir que existem pequenos milagres na vida. Entre eles estar sentado no Coliseu para vê-lo.
Poeta, dramaturgo, escritor, músico, homem. Melhor dizendo, Homem. A história de vida de Chico Buarque é recheada de história. Se calhar, não há caracteres suficientes para esta reportagem que consiga condensar toda a importância cultural que Chico Buarque tem para a cultura brasileira. Os 73 anos que tem, não os parece quando entra em palco. Acompanhado pela sua banda, é pela sua simplicidade que marca a diferença. A elegância nos detalhes, é o som de “Minha embaixada chegou“, de Assis Valente que começamos uma festa única que se prolonga ao longo de duas horas. “Vem esquecer a tua tristeza/Mentindo à natureza/Sorrindo à tua dor” é o mote que permite por os olhos a brilhar cada vez que ouvimos uma palavra a sair da boca do carioca.
A máquina, ou melhor dizendo, a caravana de Chico já vem oleada. Já são muitos concertos na estrada, até porque a tour começou no Brasil no início deste ano. E nesta viagem também se faz no tempo, quando começamos a escutar o Partido Alto ou o Iolanda. Chico Buarque era e é isto. Para além da representação de luta política que alcançava através das suas letras e melodias, também era a expressão dos sentimentos e de problemas de coração.
Mas o verdadeiro motivo (ou o principal) da vinda do Chico é mesmo o Caravanas. O 38º álbum do Chico. O álbum que foi aclamado por muitos, fruto da aura que Buarque tem ao longo de uma carreira longa e maior que todos nós. Mas também injusta e surreal polémica, com críticas que sustentavam a teoria que a Tua Cantiga tinha uma letra machista.
Porventura, isto é espelho de uma carreira que encontrou sempre adversidades, que encontrou sempre quem o criticasse. Mas também Chico Buarque encontrou sempre mais pessoas do lado certo do que do lado errado. E isso se prova quando ele se senta na cadeira montada em palco para começar a cantar as letras de alguns amigos com quem se cruzou ao longo dos anos. Como Tom Jobim, com o Retrato a Preto e Branco.
Ou como o seu neto. Como o facto de Chico Brown, o ter ajudado a escrever e a criar o Massarandupió, um palavrão enorme que é na verdade uma praia no estado da Bahia onde a filha do Chico enterrou o cordão umbilical do seu neto. A história faz-se dentro e fora da família.
O amor é o que nos resta. Se calhar é o mais importante neste concerto. O que sentimos, o que ouvimos, o que levamos para casa. Dueto, Moça do Sonho, A volta do Malandro, são temas que viajam ao longo dos anos, uns mais outros menos recentes, mas que conquistam uma plateia que é composta por todas as idades. O leque de idades é abrangente, mas uma coisa é uniforme. O conhecimento das letras do cantor. Ou da grande parte delas.
E se por acaso havia músicas que o Coliseu fazia de segunda voz do brasileiro, houve outras que não se ouvia nenhum ruído. A voz clara, límpida e segura do Chico Buarque era o que restava quando Todo o Sentimento enchia a sala.
O já citado Tua Cantiga é motivo para Chico voltar a estar de pé, com uma energia enorme e vontade de mostrar a Portugal as suas histórias e de outros companheiros com quem partilhou estrada. Como o Wilson das Neves. Usando o seu chapéu, Grande Hotel é o prelúdio para a Gota d’Água e para as Caravanas, tema que se calhar desponta a veia política de Chico, presente no álbum.
As palmas nunca são demais. Tudo soa a pouco. Ele sai do palco feliz, depois de ter tocado novamente a Minha Embaixada Chegou. Nós aplaudimos de pé. O Coliseu, como durante todo o concerto, sempre que bate palmas, estremece o chão. Volta ao palco.
Já não há quem fique sentado nos seus lugares e há muita gente que vem para as primeiras filas e fica agarrado ao palco com os telemóveis o mais fisicamente possível do palco para gravar o momento. Geni e Zapelim e Futuros Amantes são o primeiro encore e que antecede o novo regresso pela porta grande, ou melhor dizendo, segundo encore, com Paratodos e um dos grandes momentos da noite, o Tanto Mar. Esse cheirinho a alecrim escrito para celebrar a Revolução dos Cravos e o anseio por uma revolução no Brasil, que vivia a ditadura. De certa forma, continua a ser atual dada a situação política e social atual do país irmão.
A saída é pelo portão do tamanho do Olímpo. Um portão que está ao alcance de muitos poucos. E nós tivemos o privilégio de assistir a um deles. Se foi a última vez que esteve em Portugal, não sabemos (e por dentro, torcemos para que não tenha sido). Mas foi um concerto único na vida.
Texto – Carlos Sousa Vieira
Fotografia – Nuno Cruz