No primeiro dia, acusou. No segundo, foi apenas uma miragem. No terceiro, foi o dilúvio. Após a insistência deste hóspede indesejado, que teimava em dar o ar de sua graça pelo festival, a chuva tomou de assalto o NOS Primavera Sound no derradeiro dia do festival, inundando o Parque da Cidade. Impermeáveis, galochas, chapéus-de-chuva, era o salve-se quem poder.
Na maior exemplificação de como seria ir ao Glastonburry, o Porto tingiu-se de cinzento. Como, por vezes, o amor consegue falar mais alto e ultrapassar todas as adversidades que se deparam no seu caminho, a paixão fervorosa pela música que é nutrida pelo público festivaleiro do NOS Primavera Sound não vacilou e enfrentou essa chuva maldita bem nos olhos; “é o último dia, é o último esforço. Ela que se foda. Bora!”. E assim fomos.
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Arrancando o dia no idioma mais bonito que ecoou por todos os palcos do festival, esteve Luís Severo. A doce pop e de cariz emotivo do português demonstrou-se mais do que convidativa em reunir um considerável número de espectadores em frente ao Palco Seat, deixando-nos de coração cheio ver um artista nacional a mover tal multidão debaixo de chuva.
Ciente que o tempo, em ambos os sentidos, jogava contra ele, Luís Severo deixou ponto assente que iria comunicar o mínimo com o público de forma a tocar o mais possível na meia hora que lhe fora destinada; ele lá que se desculpou, mas não precisava, era exatamente aquilo que se queria. Apresentando-se em formato de banda, com nota dez para a inclusão de Manuel Palha (Capitão Fausto) nos teclados, Luís tocou os temas mais simbólicos da sua (ainda) breve carreira, com “Cara D’Anjo”, “Amor e Verdade”, “Escola” ou “Planície” a chutarem a chuva para segundo plano.
Beneficiando da qualidade de som do Palco Seat, que levou a que as suas canções ficassem num patamar acima do habitual, Luís Severo demonstrou que já tem um repertório forte e interessante, capaz de meter meio mundo a cantarolar sem qualquer tipo de vergonhas. Com a honestidade e inocência das suas canções a deliciarem os fãs de longa data e certamente a conquistar um ou outro novo, começou da melhor maneira o adeus ao NOS Primavera Sound.
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Navegando por mares experimentais estiverem os Oso Leone. Estrearam-se por Portugal em Paredes de Coura, no ano de 2014, e desde então que nunca mais soubemos nada destes ‘nuestros hermanos’, mas foi bom ver que continuam a encantar com a sua sonoridade apaixonadamente doce e embrumada.
Mesmo sem trabalhos novos desde Mokragora, lançado em 2013, para este concerto os Oso Leone foram bem mais além daquilo que nos apresentaram há quatro anos atrás. Na iminência do lançamento de um novo disco, as novas canções apresentadas retém a essência ambiental que é característica à banda, alienada à ternurenta voz de Xavier Marin, criando-se uma atmosfera enfeitiçante em torno do Palco Super Bock, que teria rendido um pouco mais caso o sol pintasse os céus.
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Quando regressámos ao Palco Seat, já os Rolling Blackouts Coastal Fever iam distribuindo ritmos vibrantes e eficazes de indie rock, repleto de semelhanças àquele praticado na época dos anos 80.
Divertidos e entretidos em soltar elevadas octanas, talvez numa tentativa de romper pela chuva, estes australianos podem não ter trazido o sol consigo, mas garra e atitude foi algo que não faltou. Com ainda só um disco na bagagem prestes a ser lançado – 15 de Junho – a que se juntam dois interessantes EP, os Rolling Blackouts Coastal Fever tanto suscitaram curiosidade para o seu álbum de estreia como nos conquistaram com temas fortes como “French Press” e “Julie’s Place”. Vamos ficar atentos a estes tipos, sem dúvida.
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Vagabon, ou uma maneira mais fácil de se dizer Laetitia Tamko, foi uma agradável surpresa para este final de tarde. Proveniente dos Camarões, esta jovem mais do que compensou a estadia do público pela chuva do Palco Pitchfork, multidão essa que se fazia sentir em bom peso.
O indie rock de Laetitia é coeso e complexo, doce e de fácil apreço. De tom grave e profundo, que nos faz perder nos seus encantos, Vagabon apresenta-se com mais dois artistas em palco, que tomam controlo do baixo e da bateria, com este tripleto a funcionar de forma exemplar, como fica logo demonstrado ao início com “Cold Apartment”.
Aproveitando o espaço de tempo que separa o Primavera Sound Barcelona do nosso, Laetitia aproveito-o para passar umas pequenas férias pelo Porto, ficando rendida à sua beleza, à sua gastronomia e ao público que a acolheu de forma tão carinhosa, com temas como “Fear & Force” e “The Embers” a fazerem furor e a levar-nos a desejar que o concerto de Vagabon durasse mais um pouco.
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A chuva era cada vez mais intensa, o que levava a que a procura por abrigos fosse cada vez maior, levando a que a zona de restauração fosse uma opção apetecível. Com uma sandes no bucho e um pouco mais secos, juntámo-nos à multidão presente no Palco Seat para acolher os Public Service Broadcasting, isto depois de quatro anos desde a sua última passagem por palcos luso.
Começando as hostilidades num português arranhado; “boa noite, Porto. É bom estar de volta”, saúda J. Willgoose, Esq, e queremos acreditar que os cumprimentos da praxe foram mesmo sentidos, visto que os Public Service Broadcasting deram um concerto electrizante, cativando cada vez mais público que passava perto do Palco Seat e queria ver de onde vinha aquele barulho curioso.
Os Public Service Broadcasting são únicos naquilo que fazem, utilizando samples de antigos vídeos informativos e de propaganda governamental, tudo alienado a um post rock que vai roubar umas quantas batidas ao krautrock. Com claras influências de Kraftwerk, a quem pedem emprestado a componente dançável, a sonoridade matematicamente calculada deste (agora) tripleto inglês foi irresistível em todos os sentidos da palavra.
Com “Go!” e “Spitfire” a deixarem o público ao rubro, e ainda contando com o auxílio de três músicos em instrumentos de sopro, como foi o caso “Progress” e “Gagarin”, os Public Service Broadcasting certamente que levam consigo o prémio de ‘concerto mais surpreendente’ desta edição do NOS Primavera Sound, isto para quem não os conhecia, claro.
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Com o sentimento de antecipação por Nick Cave & The Bad Seeds a ser praticamente palpável, já muitos eram aqueles que marcavam lugar em frente ao Palco NOS. Antecipando o nome mais prestigiado do festival é tarefa injusta, especialmente quando os concertos coincidem, e foi no meio desta infortuna que estiveram os Wolf Parade.
Depois de regressarem de uma pausa de cinco anos, os canadianos estão finalmente de regresso aos palcos, o que só por si fazia o seu concerto como um marco a ter em conta. Quis o destino que a sorte no festival não abonasse a ser favor, mas verdade seja dita que os Wolf Parade bem se esmeraram para fazer a sua própria sorte, dando um concerto intenso e de enorme entrega, dificultando a tarefa de o abandonar a meio.
No meio de uma chuva intensa, que deve ter servido como um incentivo à banda, os Wolf Parade deram tudo o que tinham para levar as poucas centenas de fãs que se encontravam no Palco Pitchfork à loucura, com as melodias vibrantes oriundas dos teclados do vocalista Spencer Krug a soarem estridentemente agradáveis. Pena o timeslot da banda não ter sido o melhor para que todo o Parque da Cidade os ouvisse.
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Em jeito de antecipação para o momento mais aguardado do último dia do NOS Primavera Sound, o céu chovia cada vez mais, numa lamúria quase reminiscente a “The Weeping Song”; a circunstância era de dor e de tormenta, ou não estivesse Nick Cave ainda a ultrapassar a perda do seu filho. Talvez nunca a ultrapasse, talvez viva para sempre dentro de um sentimento constante de dor, aquele sentimento proibido e do qual nos recusamos a passar por.
Para uma ocasião que se pretendia negrume, a chuva jogou pela primeira vez a favor do festival, criando a atmosfera pesada, de tristeza e remorso, que tanto se pretendia. Por respeito, as centenas de chapéus-de-chuva que foram distribuídos pelo recinto iam-se fechando, com o público bem ciente que umas quantas pingas de chuva não seriam pagamento suficiente para o momento glorioso prestes a presenciar-se.
Para a atual tournée, que pisca o olho aos festivais e não tanto às salas fechadas, Nick Cave percorre praticamente toda a carreira, não se focando apenas no último Skeleton Tree, o assombroso disco que retrata a dor de um pai em perder um filho, a dor de um pai em perder o sentido da sua existência. Contudo, foi ao som de “Jesus Alone” e “Magneto” que Nick Cave & The Bad Seeds deram a noite como iniciada, seguindo-se rapidamente por “Do You Love Me?”, que seria a primeira vez que Cave entrasse em contacto com os devotos fãs da primeira fila através de uma extensão de palco feita exclusivamente para o artista; face à questão interrogada por Nick Cave, o Parque da Cidade inteiro respondeu com pujança a um inequívoco “sim!”.
Depois de percorrer todo o palco e plateia em “Loverman” e “Red Right Hand” – estamos a falar num dos melhores performers vivos do rock – Nick Cave abranda um pouco as coisas e convida o público a cantar consigo; “cantemos juntos e assim talvez chova ainda mais, já que esta chuva é bem bonita”, disse antes de sentar no piano para que “Into My Arms” fosse entoada por quase trinta mil pessoas, num dos momentos mais bonitos do concerto.
Como a vida não é bonita no seu todo, seguiu-se “Girl in Amber”, com imagens de Brighton, cidade onde vive e onde o filho morreu, a serem emitidas, com o pesar de versos como “And if you want to bleed, just bleed”, “blue-eyed boy”, ou “I knew the world would stop spinning now since you’ve been gone” a remeter o Parque da Cidade num estado de silêncio profundo, de respeito, de compaixão. Nick Cave sempre cantou sobre a morte. Agora, confronta-a, e é impossível não demonstrar respeito por alguém que a olhe nos olhos.
Antecedido por uma “Jubilee Street” que recebeu um arranjo especial em palco, de combustão lenta até incendiar-se num clímax explosivo e que transpira rock ‘n’ roll, e pela aventura que foi romper pelo meio do público, culminando num mini palco no centro da plateia a partir de onde Nick Cave controlava as palmas dos presentes em “The Weeping Song”, o fim viria ao som da inevitável “Push The Sky Away”, com luzes de telemóvel e mãos no ar, com algumas destas a serem colhidas e a terminarem em cima de palco com o seu ídolo, todos eles sussurrando “keep on pushing, push the sky away” para dar como terminado o mítico concerto de Nick Cave & The Bad Seeds, onde a água da chuva deu lugar ao das nossas lágrimas.
Depois da carga emocional de Nick Cave & The Bad Seeds, era difícil encontrar o norte às coisas. Desnorteados e sem saber para onde ir, tropeçou-se pela nave especial de Nils Frahm e à boleia do compositor alemão, partiu-se por uma viagem intergaláctica em busca dos sons cósmicos e dos astros musicais que o artista tão bem conhece.
O palco do dito astronauta era um autêntico convés de uma nave, repleta de múltiplos teclados e sintetizadores, com a motherboard principal (o piano) a ocupar posição central. Na partida pelo desconhecido, Nils Frahm toma rapidamente as rédeas da embarcação e o que se seguiu foi uma hora de viagem por caminhos místicos nunca antes percorridos pelo NOS Primavera Sound, com a simbiose entre música clássica e electrónica do artista a ser um autêntico luxo para os nossos sentidos.
Por esta odisseia no espaço, as sensações que se viveram foram imensas, talvez demasiadas em tão pouco espaço de tempo, não sendo experienciadas com a intensidade que requeriam. Mas tudo bem, o objetivo nunca tinha sido esse, mas sim ficar a par da beleza de tudo aquilo que nos rodeia, tão pura e simples que consegue transcender a linha que separa o real do imaginário. Harmonias e melodias uniram mundos pelo Palco Super Bock, e não poderia ter soado de melhor forma.
Chegados são e salvos à Terra, tudo parecia normal pelo Parque da Cidade, ou pelo menos tal e qual como o tínhamos deixados quando partimos. Não poderíamos estar mais errados, ou não tivesse o céu, ainda coberto de nuvens e a derramar chuva por todos os cantos, sido invadido por relâmpagos: eram os Mogwai.
O post rock não se explica, sente-se. É música puramente instrumental, onde a única voz que se ouve é a da junção de múltiplos instrumentos em perfeito uníssono. Os Mogwai já têm vinte anos de carreira, o que leve a que a cumplicidade nutrida pela banda eleve os padrões do post rock ao mais alto nível; afinal, os escoceses são um dos pioneiros dentro do estilo.
Mesmo não contando com a mesma afluência que atuação anterior no mesmo palco, e “assombrados” pela praga dos múltiplos chapéus-de-chuva abertos ao longo do concerto, a sonoridade dos Mogwai rompeu pela colina do Parque da Cidade, com o seu post rock abrasivo e profundo a personificarem verdadeiras descargas de eletricidade, daquelas cujos volts destroem tudo no seu caminho.
Desde músicas que se vão lentamente construindo até culminarem num rompante clímax, como “Mogwai Fear Satan”, “I’m Jim Morrison, I’m Dead” ou “Auto-Rock”, até à constância rockeira de “We’re No Here”, o catálogo presenteado pelos Mogwai foi rico, diverso e imersivo, levando-nos quase a levitar ao longo de cada canção para um local fora daquela. Infelizmente, a chuva pesava e não nos deixava flutuar grandes distâncias.
Com a piedade de São Pedro a ser inexistente, muitos foram aqueles cuja chama ateada pelos Mogwai se apagou, abandonando o festival para encontrarem um banho de água quente bem merecido. Para os que se estavam nas tintas para as condições meteorológicas, ficará a memória de um dos melhores concertos que os Mogwai já deram por Portugal, com a chuva a enaltecer a sonoridade profunda que o quinteto escocês assina no seu post rock; “thank you” e “obrigado” foram as frases mais proferidas (únicas?) pela banda ao longo da noite, mas com aquele concerto, era o público que tinha todos os motivos do mundo para agradecer.
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A chuva marcou este último dia do NOS Primavera Sound, não houve qualquer tipo de dúvidas. Irritante e desnecessária, incomodou todos os festivaleiros que pretendiam ter um vislumbre daquele que é, sem sombra da dúvida, o arranque da época dos festivais de Verão. Contudo, no final do dia, é inquestionável que a chuva criou o ambiente que marcou alguns concertos, como foi o caso de Nick Cave & The Bad Seeds. E para esses caso, o mais importante não é sempre a música?
O NOS Primavera Sound regressa em 2019, nos dias 6, 7 e 8 de Junho. Faça sol ou faça chuva, o Parque da Cidade continuará a albergar a melhor música que se faz nos dias de hoje, e como ficou demonstrado neste dia 9 de Junho, não há nada nem ninguém que impeça o povo português de a escutar.
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Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Luís Sousa | Hugo Lima (NOS Primavera Sound)
Evento – NOS Primavera Sound’18