A mais recente edição do NOS Primavera Sound foi repleta de excelentes concertos, desde Tyler, The Creator, Fever Ray, Public Service Broadcasting até o inevitável Nick Cave & The Bad Seeds, boa música foi algo que não faltou ao longo dos três dias do evento. Porém, e isto numa conotação pessoal, o momento que mais me marcou foi sem dúvida a actuação de Lorde, e toda esta pode ser resumida numa única canção: “Liability”.
Era o nome mais ‘comercial’ aos olhos do público em todo o cartaz do NOS Primavera Sound. Lorde, pseudónimo de Ella Yelich O’Connor, revolucionou a música pop em 2013 com o estreante Pure Heroine, com numerosos elogios à abordagem sombria e eletrizante que a jovem incumbia dentro da sua música pop, estilo este, por norma, se destaca pela sua felicidade contagiante.
Dona de uma sonoridade singela e lírica ambiciosa, Lorde tornou-se numa das pérolas melhor polidas dentro da música pop actual, com o universo alternativo a pintá-la como uma rédea de esperança dentro de um estilo genérico, previsível e repetitivo; Ella arriscou, apostou e ganhou. Perante tal ambição, a notoriedade apareceu como natural, o que, alienado a uma vasta legião de fãs, decorados com glitter pelos olhos um pouco por todo o Parque da Cidade, só por si justifica o estatuto de cabeça de cartaz para o primeiro dia do NOS Primavera Sound.
Esse dito glitter, que condizia com os casacos de lantejoulas usados por muitos pelas primeiras filas do Palco NOS, esmerava-se por não desaparecer face ao ritmo alucinante com que Lorde conduziu o seu concerto. Em prol do magnífico Melodrama, de longe um dos melhores discos de 2017, a noite arrancou ao som de “Sober” e “Homemade Dynamite”, incendiando logo um recinto que ainda acusava vestígios da chuva diurna. Com as suas danças esquizofrénicas algo já características a serem acompanhadas por um estrondoso e ruidoso coro de devotos, que não deixavam escapar nem uma palavra da pop estimulante de Lorde.
Recuando ao passado através de “Tennis Court”, “400 Lux” e “Ribs”, demonstrando como Pure Heroine conseguiu envelhecer de forma grandiosa, Lorde não teve qualquer tipo de dificuldades em comandar uma maciça plateia como somente sua, com a faixa adolescente a ser a mais representativa. Aliás, a mesmo provou-se tão ruidosa e afetuosa ao ponto de levar a artista a confidenciar que não se lembra da última vez que tinha sido acolhida de forma tão calorosa e carinhosa por um público; “há muito tempo que não estava em Portugal. É tão bom estar aqui finalmente com vocês!”. Certamente que a demora estava a ser recompensada.
Melodrama é um disco profundo, imersivo, repleto de conteúdo no qual nos perdemos horas a fio, conduzidos sempre pela sua ambição e beleza. É incrível como a transição do mesmo para o palco é feita no ponto, com todos os detalhes e melodias a reterem a sua presença e deslumbre. Contando com o auxílio de três músicos – um baterista e dois teclistas – e sete bailarinos, o reino encantado de Lorde foi implementado de forma tão bonita e natural que até aqueles a quem a artistas dizia entre pouco a nada, têm que lhe tirar o chapéu perante este novo espetáculo, especialmente tendo em conta a notória evolução face à sua última aparição por palco lusos, no Rock in Rio Lisboa, em 2014.
A meio do concerto veio então o momento que mudou tudo e todos, “Liability”, a balada de Melodrama que causa arrepios pela espinha, arrepios esses que se multiplicariam às dezenas pelo discurso que a antecedera:
“This song is one that I wrote about a time where I felt very alone and very much like no one would ever stay, that everyone would always leave, which is a very sad little feeling, isn’t it?”
But I want you to know that if you feel like nobody’s gonna stay, like everybody’s gonna leave, because you might be too much for them… F*ck them! F*ck them Porto, because you’re perfect!”
Todos temos a tendência de associar músicas a momentos específicos da nossa vida; é um processo natural. Nesses instantes, tentamos entrar na cabeça do artista que as cria com o intuito de perceber se também ele estava a passar ‘por aquilo’. E ali confirmou-se: Ella Yelich O’Connor é uma de nós, é um ser-humano que verbaliza instantes em que a própria viveu-os.
Com a idade adulta apenas agora alcançada e um mundo inteiro pela frente, Lorde mostrou a sua faceta mais íntima para demonstrar que a dor e a solidão são etapas naturais no nosso percurso; todos passámos por e voltaremos a encontrá-las. O sentimento intrínseco de tristeza que as liga estará sempre lá presente, mas cabe-nos a nós ultrapassá-lo e não nos deixarmos consumido pelo mesmo. Lorde fê-lo. Lorde verbalizou-o perante uma massa adolescente que começa agora a enfrentar os primeiros confrontos diretos e marcantes com estes sentimentos, e que recorrem à neozelandesa por apoio. E Lorde fê-lo.
Por instantes, um concerto subiu a parada para se tornar numa sessão terapêutica na primeira pessoa. Lorde cresceu, era uma miúda quando pisou palcos portugueses pela primeira vez – “eu tinha dezassete na altura, e é bonito ver como muitos de vocês têm a minha idade e cresceram comigo” – e agora, enquanto adulta, mantém a ingenuidade em querer ajudar o próximo e tornar um mundo num lugar melhor. E digam-me, haverá sentimento e devoção mais bonitos do que estes a residir nas nossas canções?
Com a perfeita sintonia entre artista e plateia alcançada, visto que ficou bem frisado que ambos eram ‘um’, o concerto entrou numa rota ascendente para celebrar os maiores êxitos de Lorde, com a mesma a aproximar-se perante as grades em “Team”, talvez numa tentativa de consolar as lágrimas soltas no emotivo discurso de “Liability”. Antecedida pelo seu primeiro grande hit, mas que já não tem a mesma capacidade de destaque perante um catálogo de canções tão forte, “Royals”, “Perfect Places” e culminando na eletrizante e festiva “Green Light”, Lorde veio, chegou e triunfou. E certamente que ninguém dirá o contrário.
Pode não ter sido o melhor concerto do festival, é certo. Aliás, não o precisava de ser, apenas tinha que ser sentido e bonito. E foi. Ou se foi.
Texto – Nuno Fernandes
Fotografia – Luís Sousa