Parecia impossível, mas aconteceu. Três décadas e meia, foi este o tempo de uma espera que se julgava já eterna pelo regresso dos Kiss a Portugal, símbolo imortal do Rock & Roll mais festivo, e, porque não, excessivo. Mas assim foi, e, de novo maquilhados a preceito, Paul Stanley e Gene Simmons chegaram com a consciência de que era necessário recuperar o tempo perdido ao fazer de Oeiras uma Rock City, num espectáculo daqueles à antiga, com tantos clássicos quanto pirotecnia e teatralidade. A aquecer os ânimos neste Legends of Rock estiveram os Megadeth, seminais porta-estardartes do thrash metal, infelizmente prejudicados pelas circunstâncias.
Para este primeiro dia do Legends of Rock queria-se uma festa imaculada, mas tal não aconteceu, pelo que despachemos logo o puxão de orelhas inevitável. Imagine o incauto leitor que, ocorrendo este Legends of Rock uma terça-feira, sai do trabalho a correr para apreciar uma noite à antiga, sobrevive à A5 para chegar mesmo a horas e depara-se com uma fila interminável que serpenteia em redor do Estádio Municipal de Oeiras e que se move a passo glacial. Por mais dantesco que isso pareça em 2018, foi exactamente o que aconteceu, graças à inexplicável decisão de ter um único ponto de acesso ao recinto, o que privou grande parte do público de assistir a, pelo menos, dois terços do concerto de Megadeth. Compreende-se que o espaço em si não ofereça os pontos de acesso que outros estádios maiores possuem, mas mais desconcertante se afigura o cenário quando, enfrentada com a responsabilidade de arrastar a situação ao mais absoluto insustentável, a segurança subitamente tenha aberto entradas alternativas para fazer escoar toda a gente. No final de contas, foi um percalço desnecessário que deixou um amargo na boca de muitos dos presentes, quando essa sensação apenas devia advir de copiosas doses de cerveja.
Se a situação lá fora se achava emperrada, em cima do palco os Megadeth mostraram-se tão escorreitos quanto possível, mesmo a atuar para um público insuficientemente composto. A terminar a tour do mais recente Dystopia, Dave Mustaine e companhia voltaram sete anos depois a Portugal para mais do mesmo, o que é um elogio. Já se sabe que Mustaine, líder incontestável da banda (ele É a banda), apenas escolhe os melhores para o acompanharem e nesta tour não tem sido diferente, com Dirk Verbeuren atrás do kit e esse fenómeno carioca de destreza e feeling de seu nome Kiko Loureiro, a fazer esquecer outros guitarristas de vulto que por aqui já militaram.
Fora duas incursões pelo seu décimo quinto álbum, o que o quarteto trouxe foi um desfilar de clássicos, a abrir com Hangar 18 e a passar por clássicos como Take no Prisioners, Peace Sells e esse malhão do oculto – não eras novo cristão, Dave? – que é The Conjuring. A única falha que apontamos, para além da cada vez mais deteriorada voz do frontman (mas sejamos sinceros, esse nunca foi o foco dos Megadeth), foi terem tocado a melhor-música-que-nunca-tocam-ao-vivo que é My Last Words durante toda a digressão e deixarem-na de parte em Oeiras. De nada valeu a Mustaine desfazer-se em elogios a Portugal antes de acabar com o portento que é Holy Wars… the Punishment Due, irrepreensivelmente tocada, inclusive a secção arabesca sacada pelo Kiko Loureiro com uma naturalidade tal como se tivesse sido ele a inventar o alaúde. Foi bom, mas esta não lhe perdoamos.
Com o passar da hora, a indignação que ainda pulsava em muito boa gente deu lugar à expectativa, já com todos à espera pelo retorno dos Kiss a estas bandas, eles que em 1983 chegaram ao Dramático de Cascais despojados dos seus famosos trajes e pintura facial para abraçar os anos 80 com Lick it Up. Ao fim ao cabo, mesmo sem contar com dois dos membros originais (se bem que Tammy Thayer, na guitarra, e Eric Singer, na bateria, já se podem considerar parte da mobília), esta foi a estreia dos Kiss clássicos, em toda a sua gloriosa excessividade: na maquilhagem, na postura, na pirotecnia quase omnipresente.
Olhar para o quarteto nova-iorquino em 2018 é tomar consciência da dualidade do tempo, que tanto retira vitalidade quanto amadurece e bonifica. Por um lado é inegável que estivemos perante uma banda sem o fulgor de outros tempos, e se Gene Simmons e restantes membros ainda estão para as curvas no departamento vocal, Paul Stanley compensou o estado sofrível das suas cordas vocais com entusiasmo, mas viu-se constantemente engolido pela restante instrumentação. Por outro, a passagem dos anos torna o que antes era visto como foleiro – para não dizer a palavra proibida, “azeiteiro” – em nostálgico e despretensioso, o cinismo a dar lugar à genuína apreciação. Os Kiss são uma banda como já há poucas, maiores que a vida, o mais puro Rock de estádio desenhado para nos deixarmos levar pelo escapismo construído à base de grandes explosões e ainda maiores refrães, e devemos celebrá-los enquanto tal.
Tendo este estado de espírito em conta, não deixou de roçar o Spinal-Tapesco ver Paul Stanley gritar “You want the best? You got the best! The Hottest Band on Earth: Kiss!” para logo a seguir o quarteto entrar numa sequência de canções afrouxada por má qualidade de som e problemas técnicos nos ecrãs. Nisso, podemos considerar que os Kiss seguem as tradições do Rock & Roll tão à risca que até os obriga a ter um som sofrível até à terceira música, sendo que Deuce, Shout it Loud e War Machine mereciam mais e melhor. Contudo, rapidamente esqueceu-se esse percalço quando Firehouse soou potente e cristalina, acompanhada pelo cuspir de fogo da praxe de Simmons. A partir daí, pantomima e música foram todo e um só, com temas marcantes infundidos com elementos cénicos.
Pode dar-se o caso de considerar que o estilo ultrapassa a substância nos Kiss, mas aqui estamos perante um cenário onde as duas componentes são inseparáveis. O que seria God of Thunder sem um Gene Simmons içado para uma plataforma pendurada no topo do palco, com sangue a verter da boca? O que seria Shock Me sem a guitarra de Thayer disparar faíscas acompanhadas de petardos? O que seria Lick it Up sem as nuvens de chamas a circundar Eric Singer? Seriam todas elas malhas lendárias, mas não seriam os Kiss a tocá-las sem dar-lhes essa componente de espectacularidade. O único caso em que o tiro lhes saiu pela culatra foi com Love Gun, com Stanley a fazer slide do palco para tocar em cima de uma plataforma sobre a régie, dividindo a atenção do público entre os dois focos desnecessariamente.
Naquela que foi uma volta olímpica de temas mais antigos de toda a sua discografia – à excepção de Say Yeah, do álbum Sonic Boom – houve a ginga suja e sensual de Calling Dr. Love e Cold Gin, o disco infeccioso de I Was Made For Lovin’ You, o Hard Rock infundido de Soul na magnífica Black Diamond e aqueles gritos em coro de deixar o público na palma da mão em I Love it Loud. De resto, apesar de por toda a parte se verem membros indefectíveis da Kiss Army por Oeiras – foram vários os que ostentaram as suas caras orgulhosamente pintadas -, é inexplicável a recepção algo morna a uma setlist de luxo tocada com o ânimo que os Kiss demonstraram. Essa tepidez, todavia, desapareceu nas duas últimas músicas, que terminaram o concerto em grande festa: primeiro com Detroit Rock City, depois com a inevitável Rock N Roll All Nite, já em modo réveillon da Madeira, com confetti, explosões em barda e fogo de artificio. Pródigos, os Kiss regressaram ao nosso país, mas esta não é uma história bíblica, eles já construíram a sua própria mitologia.
Texto – António Moura dos Santos
Fotografia – Luis Sousa