Noite de sábado e de sons mais dark organizada pela Menino da Lágrima no Sabotage. Ocorre-me pensar que antes das filhoses e das celebrações natalícias, dois sábados antes, imergimos na (des)mistificação do oculto (e bem antes da eucaristia dominical do dia seguinte…), o que pode ser refrescante. – Pelas 23h00 o Sabotage já estava bem composto, inclusive ía-se cumprimentando amigos e conhecidos, sem dúvida pelo feedback gerado em compasso de espera para assistir ao concerto dos portugueses She Pleasures HerSelf (Com S maiúscula como os próprios se designam) – o principal motivo de ida ao clube do Cais do Sodré aparentava ser mesmo esse, e é claro, com o bónus de assistir à performance dos The Devil & The Universe, projecto colado ao estilo goat wave, tal qual eles próprios se auto-classificam (facilmente encontramos muitas boas referências escritas pela web afora), de som festivo, denso e definido. Mas já lá vamos. Para já, fica a ideia de que se organizou ali um evento interessante para os que assistiram e lotaram a sala do Sabotage na perspectiva de uma estética dark rock, ou… goat wave, ou, o que for.
She Pleasures HerSelf
A actuação dos She Pleasures HerSelf aconteceu não às 23h00 como estava anunciado, mas sim com quase meia hora de atraso, levando a que um certo clima de ansiedade pelo início das hostilidades se instalasse na audiência, algo que de um modo geral, até é bom acontecer em qualquer concerto rock pela expectativa mas era um prenúncio de alguma desadequação de horários.
Tendo em conta a fulgurante entrada em cena da banda, primeiro com David Francisco (guitarras/teclas) e depois com o seu irmão Nuno Francisco (bateria electrónica), com um riff de guitarra num sustain contínuo e a navegar por cima de uma intro avassaladoramente negra e impactante e dando tempo para que os restantes músicos entrassem – Letícia Contreiras (teclas/baixo) e por fim, o último a entrar, Nuno Varudo (voz) munido de uma corrente (que quase de imediato atira para o chão) e de um look claramente transvestido de glam, de cabelo louro e postiço e, claro com um propositado abuso de maquiagem, percebe-se logo que há um cuidado extremo na imagem de cada um dos músicos – cada um com pormenores de estilo individual e onde as luzes em uníssono com as projecções alusivas à temática da banda, projectam num todo, um dark rock ora pontuado por guitarras ora por teclados, sempre fortemente ritmados, e claro, com um imaginário fetichista dark. O sexo. As relações entre as pessoas… e o lado mais obscuro da vida. Se fosse crente em astrologia apetecia-me comentar que a temática desta banda está no signo de… – Escorpião.
Agora no que diz respeito às canções, elas mesmas são objectos separados umas das outras, algumas são mesmo tiros certeiros para grandes audiências, por exemplo o “Dance With Her”, ou a versão de “I can’t Live In a Living Room” dos Red Zebra. – E é nesta fórmula de refrões apelativos, de teclados e de guitarras em harmonia e, ocasionalmente de um baixo marcado por Letícia a teclista da banda, com a voz de Nuno Varudo num registo, não vou dizer mais pop (porque não se aplica), mas sim a tender para o refrão repetitivo é, quanto a mim, uma das virtudes funcionais desta banda.
Depois existem um ou dois temas onde as guitarras descansam e os próprios teclados soam ainda mais minimais, dão um contraponto interessante, apelando também a uma linha quase transvestida de estilos ou influências Depeche Mode e Kraftwerk, é algo que é interessante de ver e que pode apontar para novos – futuros caminhos para a banda. Pelo meio, tivemos precisamente pelo menos um tema novo pelo que me foi dado a perceber, funcionou bem em palco, e deu algumas pistas para o segundo disco que se anuncia segundo o vocalista, ‘em princípio, em Janeiro’.
Com o set-list a incidir maioritariamente no primeiro longa duração do colectivo, apropriadamente intitulado de Fetish, os She Pleasures Herself conseguem acentuadamente deixar alguma curiosidade nesta prestação ao vivo, e certamente muitos dos que assistiram estarão de novo presentes quando for altura de apresentar esse novo disco. Existe irreverência no trabalho destes músicos, uma atitude desafiante, imagem concordante, e as canções que para os fans do género, não desiludem. Não são plasticamente perfeitos nem querem ser, tiveram até uma atitude de estardalhaço no último e derradeiro tema “Visions”, com Nuno Francisco a derrubar o seu kit de bateria electrónica espalhando um certo caos de fios e ligações e material no palco, e o seu irmão David a largar a guitarra no chão a debitar um feedback em loop quase dois minutos a soar altíssimo já num cenário abandonado. Estariam zangados? Talvez. Se sim, fez sentido no momento. Porque é numa noite de aclamação que podem e “têm” de exponenciar essa “fúria” punk: atiram para o chão o que lhes é mais caro, os instrumentos – representam nesse gesto e momento as várias gerações de músicos portugueses, que por cá, foram e são vítimas de preconceito de género, estilo, e que ano após ano não desistem da sua paixão, mesmo debaixo dos olhares recriminadores ou indiferentes de mentes reduzidas que fecham portas e se trancam lá dentro com playlists estéreis; ou as inúmeras salas neste país, presas a cardápios fáceis. Zangados? Porque pressinto que é lá fora no “estrangeiro” que ainda que com tanta concorrência, sentem que lhes dão mais oportunidades. Pressinto também, que essa atitude “punk” fetish ainda vai ter cartas para dar. Aguardo com curiosidade o novo disco.
The Devil & The Universe
Infelizmente foi longa a espera até que os austríacos The Devil & The Universe se decidissem a entrar em palco. Resumo que mesmo com problemas de ordem técnica e com quase quarenta minutos a olhar para o cenário de um bode, ou cabra, ou qualquer coisa ligeiramente satânica, mesmo com a excelente música que se fazia ouvir da cabine de som do Sabotage, para mim foi demais. São imprevistos que acontecem com certeza, a julgar pelas intensas conversações da banda com o técnico de som em palco, acentuou-se um efeito de cansaço que se generalizou. E foi por causa disso que assisti a pouco mais de meia hora da actuação goat wave destes três músicos que a tardias horas depois dos problemas técnicos resolvidos, entraram a preceito tal como os vemos em vários videoclips que espelham essa representação alegórica à cabra, ou ao bode… , novamente, o meu forte não é a Zoologia. Mas o impacto visual da actuação deste trio – é grande. Não consegui deixar de soltar uma gargalhada ao ver aqueles três homens adultos a entrarem naqueles propósitos em palco, mas rapidamente a música, as projecções na tela, no fundo do palco muito bem trabalhadas, e as percussões. Tudo se encaixou no concerto destes austríacos que na vida civil se chamam Ashley Dayour, David Pfister, Stefan Elsbacher.
Canções ritmadas com títulos como “Danaus Plexipus” ou “Black Harvest” e o empenho que demonstraram em cena, nem que seja por isso estarei disponível para os ver de novo caso regressem, e explorar melhor esse imaginário que apesar de muito bem construído, imagino que nem os próprios o levem muito a sério, no fim, a música é que é importante. Para já em Lisboa este foi o último concerto da digressão Alchemical Landscapes Tour dos The Devil & The Universe. Foi portanto uma noite de enchente no Sabotage e apesar dos percalços e do deslize das horas, de uma maneira geral a organização está de parabéns.
Goat wave – No dia seguinte ainda fiquei a pensar nisso durante a missa.