Há algo de terapêutico na chuva, ora seja pelo som das pingas a cair, o cheiro a humidade pelo ar ou até pelo clima de mudança na atmosfera. Contempla-se a chuva como um ciclo, um instante de introspeção que antecede a premissa do “momentos melhores virão”. E é aí, possivelmente, que faz o porquê de ela ser vista como um dos processos mais bonitos nestes meses iniciais de um novo ano.
Porém, ao longo de todo o ano, quando a precipitação das nuvens não cai pela terra, há quem procure outros refúgios de fins terapêuticos. Para nós, melómanos confessos de música, há sempre um leque de x canções ou artistas que nos cedem esse apoio. A nível do panorama nacional, a guitarra aconchegante de Norberto Lobo parte na dianteira no que toca à garantia do ‘efeito chuva’.
Curiosamente, e como se de uma ironia do destino se tratasse, a noite inicial dos concertos de residência de Noberto Lobo pela Galeria Zé dos Bois foi brindada de chuva com fartura, inundado e despovoando as movimentadas ruas do Bairro Alto, localização rainha na noite lisboeta.
Fruto das condições climatéricas não propícias a passeios pelas ruas, o melhor porto de abrigo acabaria mesmo por ser o número 59 da Rua da Barroca. Na entrada do carinhosamente apelidado ‘aquário’, a decoração de palco de Norberto Lobo é escassa – amplificador, pedais, cadeira e guitarra – mas poucas são as vezes em que o pouco sabe a tanto.
Ao início, ouve-se um Mi solto, acompanhado por um dedilhado nas restantes cinco cordas, cujos efeitos nos pedais dão um charme ternurento ao improviso de um homem que rapidamente demonstra como é que a guitarra consegue ser uma extensão do seu próprio corpo.
Entre hammer-os e pull-offs, meticulosamente engrenados por distorções de pedais, Norberto Lobo não se fez de cerimónias em soltar-se por temas suscetíveis a arrancar as mais diversas sensações: Desde as suas ameaças em arredar pé da cadeira, passando pelo levantar das pernas e culminando nas contorções do seu corpo, era inquestionável a emoção que o artista nutre pelo seu repertório.
Dada a falta de voz nas canções de Norberto Lobo, cabe ao ouvinte figurar as histórias que lhe dão corpo; de entrar na célebre mente de Lobo. Mas é por entre este tango de notas que baila na guitarra, que somos automaticamente recambiados para o par dessa dança.
A emotividade dos temas de Norberto Lobo teima em querer dar voz a um casal que se sente atraído um pelo outro, com a mesma intensidade do que dois ímanes, mas cujas aventuras do passado afligem-nos de consumar o que nutrem. A longevidade de cada canção retrata então as desavenças e adversidades que enfrentam, isto até que o destino finalmente lhes sorria e alcancem finalmente a felicidade merecida.
Enquanto se figura o desfecho da história de apaixonados não assumidos, a cortina de Norberto Lobo cai pela penumbra, deixando o término do tango à mercê da nossa imaginação. E com ele, os instantes de introspeção e de reflexão, reminescentes de um dia chuvoso contemplado da janela, cessam para dar lugar à realidade: o futuro pertence àqueles que agem perante a indecisão.
E foi com o ecoar das pingas da chuva, que caiam pelo exterior, a funcionar como a música de fundo mais propícia para um concerto de Lobo, que Norberto Lobo não poderia ter tido um cenário mais idílico para o arranque da sua residência na Galeria Zé dos Bois. Em noite de chuva, daquela que encharcou todo o impermeável que marcou presença pelo ‘aquário’, uma garantia ficou no ar: todos saíram dali de sorriso estampado. E quiçá, a vontade de agir perante àquilo que parece ser o correcto.