Os UHF já fazem parte do nosso crescimento há muitos anos e, em Dezembro de 2018, comemoraram 40 anos de estrada e de rock português. Para comemorar estas quatro décadas, deram 2 concertos (40 Anos Numa Noite em Lisboa e Porto) com convidados especiais; reeditaram três “gravações perdidas”: “Persona non Grata”, “Ares e Bares de Fronteira” e “Ao Vivo em Almada (no jogo da noite)” e lançaram um single que pertence ao novo álbum que está a ser cozinhado.
Porque 40 anos de rock não pode deixar ninguém indiferente, o Música em DX esteve à conversa com António Manuel Ribeiro, fundador dos UHF, para ficar a conhecer melhor o que está por detrás desta longa carreira.
Música em DX (MDX) – Como foram os concertos “40 Anos Numa Noite”? Foram literalmente isso?
António Ribeiro (AR) – Sobretudo foi uma reunião com alguns amigos da música. Quando digo isso é porque, às vezes, nós falamos ou pressente-se que existe uma divisão ou uma certa distância, às vezes até ciúmes, em relação a vários artistas e, de repente, nós aparecemos ali com eles e houve pessoas que ficaram um bocado alarmadas. Isto às vezes não se percebe mas existe porque a música une as pessoas e nós temos todos o mesmo objectivo: fazer coisas bonitas que nos deixem de bem com a vida. Pelo menos é assim que eu vejo a música! Reunir quase 360 canções numa noite, claro que não, mas são as mais simbólicas e depois também deixamos os nossos convidados escolher as canções que quisessem tocar.
MDX – Foi surpreendente essa escolha da parte deles?
AR – Não! Quer dizer, acho que todos queriam tocar a “Cavalos de Corrida” e não havia hipótese! Portanto, o Paulo Furtado foi o primeiro a dizer e foi para ele que ficou a canção e foi bonito. Nos ensaios viu-se logo a envolvência, parecia que estávamos todas as semanas ou há um mês a ensaiar juntos. Fomos tocar aquilo que estava estipulado, quer dizer nem sequer havia indicações, chegamos ali e fizemos.
MDX – Mas o sentimento foi de olhar para trás e ver ali 40 anos ou foi só um concerto de celebração?
AR – Foi um concerto de celebração. Eu não sou nada saudosista. Posso falar muito do passado até quando escrevo artigos mas nunca direi que antigamente é que era bom.. Não era nada bom, era horrível! Em 78 nós estávamos ainda a dar pegadas lentas para aprender uma coisa chamada liberdade e portanto não é fácil para um país que esteve 48 anos sob um regime ditatorial e de repente abrir a cabeça e dizer que vão viver tudo de uma forma diferente. Isso não acontece, leva tempo e ainda hoje há coisas que estamos a aprender e portanto olhar para trás não sou capaz. As canções eram simbólicas, algumas delas eram as canções que nós queríamos tocar, nomeadamente por causa dos 3 discos que editamos há pouco tempo e havia canções que nós queríamos muito tocar porque estavam esquecidas, efectivamente.
MDX – Na descrição do último single que lançaram – “Hey Hey (bora lá)”, podemos ler “sempre foi assim perante os obstáculos nestes 40 anos”. Há algum ou alguns obstáculos que queiras destacar?
AR – Muitos! Isto não é um país muito amigo da música e da arte, acho que os que consumimos cultura somos os mesmos há muitos anos, alguns vão morrendo e não sei se aparecem outros novos, é triste dizer isto mas é verdade. Quando se acusam os artistas de ter certos cachets nunca se avalia que o artista não tem um vencimento ou o resultado da sua profissão é incerto, ao fim do mês ele não recebe, pode receber ou pode não receber, pode receber mais ou pode receber menos. Quando eu apareci, havia a ideia de que o músico era um tipo marginal com cabelos compridos, ligado às drogas que se levantava às 4 da tarde e, portanto, era o paradigma de um marginal que as pessoas aceitavam. Normalmente era um sujeito que tinha uma profissão desconhecida e depois das 5 da tarde fazia música. Ora, isso é a antítese daquilo que eu sou e do que o que são os UHF desde o princípio. Primeiro eu quis deixar de ter um trabalho para ser músico a tempo inteiro. Eu sou profissional da música há 40 anos, depois vivo sem horários, mas trabalho mais que uma pessoa normal, quer dizer nós trabalhamos por objectivos e não por horários e se estamos muitas vezes sem um único fim-de-semana, é um bocado saturante e é preciso parar. Às vezes sento-me neste sofá com um livro e ponho a minha colecção de jazz para não ouvir nada, nem falar com ninguém. Eu às 8.30, 9h estou a pé se não tiver uma obrigação, se não levanto-me mais cedo. Os ensaios de UHF começam às 11h não é as 5 da tarde e, portanto, ao longo deste tempo todo, primeiro foi destruir esse paradigma, essa ideia fotográfica de que nós éramos esses sujeitos e isso faz-se com trabalho, faz-se com aquilo que nós construímos: as canções e o público, se não houvesse público não havia UHF a não ser que fossemos subsidiados pelo estado e aí é que aguentávamos sem público, felizmente não somos. Depois, no princípio, uma coisa que era horrível, era o preço dos instrumentos. Havia poucos e eram caríssimos, em 78 nós estávamos de baixo de uma intervenção do FMI em Portugal, estivemos à beira da bancarrota e, portanto, as importações além de serem caríssimas eram proibidas. As próprias lojas em Lisboa que representavam certas marcas não tinham os instrumentos. Chegavam cá com um preço exorbitante, a taxa na altura era a taxa de luxo, ou seja, um instrumento musical não era um instrumento de trabalho, era um luxo. Ainda hoje acontece isso, o IVA nos instrumentos musicais baixou um pouco mas ainda não é aquilo mais acessível e é preciso ver que um instrumento musical tira miúdos da rua! Depois era a sala de ensaio, não havia como hoje. Nós entre 77 e 80 andámos sempre de instrumentos às costas a ser corridos porque fazíamos barulho. Depois era a indústria… não existia! as editoras discográficas estavam vocacionadas para um tipo de música, na altura música ligeira, a música de intervenção andava um pouco sem sangue quente porque os artistas andavam na rua a fazer greves e compunham pouco e é um bocado neste vazio que nós aparecemos, só que ninguém acreditava nisto. Por isso, em 1979 quando nós lançamos o primeiro disco O Jorge Morreu, fomos à Rádio Comercial que na altura se chamava Rádio Clube Português. Foi por lá que começou uma parte do 25 de Abril e então para nunca mais serem apanhados de surpresa pelos militares (é a minha leitura) passaram a ter uma porta de madeira muito forte com uma janelinha que se abria. Nós tocamos à campainha, abriu-se a janelinha e vê-se um senhor que nos diz: “o que é que vocês trazem ai?” – “nós vínhamos entregar um disco de rock português” e o senhor: “um disco de que?” e eu senti-me tão mal que só me apeteceu fugir, não estávamos à espera daquela recepção. Portanto, estas dificuldades provam que é sempre muito difícil estar-se à frente do tempo.
MDX – Já que estamos a falar disso, nestes 40 anos no mundo da música em Portugal, olhando para trás, para o meio e para agora, quais são as principais alterações tanto positivas como negativas, para além das que já falámos, que possas referir?
AR – Houve uma pulverização da indústria, há discos que eram de prata antigamente e agora seriam 4 platinas, baixou tudo e andam todos muito contentes. O David Ferreira, que foi meu chefe na Valentim de Carvalho e mais tarde na EMI tinha uma frase fantástica que eu tenho de citar: “Andamos todos a discutir a maior fatia do bolo, mas o bolo é cada vez mais pequeno.” Esta é uma verdade que revela neste momento uma coisa que é a dificuldade de aparecer um grupo como os UHF ou os Xutos que têm fãs e gente no país inteiro que os segue. Hoje em dia a indústria está no seu melhor acto de cinismo: venha o produto, está a vender, deixou de vender, mete de lado e venha outro. Não há carreiras nem há protecção do artista. Por exemplo, não desvalorizando os GNR, mas eles tiveram um single de sucesso, o “Portugal na CEE”, o segundo single já não é de sucesso, o primeiro álbum não tem sucesso e a Valentim de Carvalho continua a apostar até que o sucesso apareceu na carreira dos GNR, eu acho que neste momento isto não vai acontecer com ninguém. O disco vai para o mercado e ou funciona ou se mete de lado e vem outro. Estamos numa fase de produtos, de embalados. A música está pior neste aspecto porque há menos arte e mais produtos embrulhados mas é o tempo que estamos a viver, em Portugal isto é tudo muito frágil. Hoje em dia um disco que custe acima dos 5000€ é um risco enorme, para um artista novo então, ou tem dinheiro para gastar ou é uma tragédia, porque se não vender discos e pensa que o spotify lhe vai trazer dinheiro, aquilo é só uma brincadeira. O youtube funciona para umas coisas mas não funciona muito bem para a música em termos de rendimento. Se quisermos juntar ao CD mais um vídeo (eu cheguei a fazer vídeos que nos custavam 10, 12, 15mil €, neste momento se fizermos um vídeo acima dos 500€ é uma complicação muito grande porque nunca vai haver o retorno). Durante 2018 dirigi um masterclass da Antena 1 e uma coisa que dava por conselho aos alunos era que há muita gente nova que ainda sonha em ir para uma grande editora multinacional porque acham que elas fazem artistas, mas não fazem, elas exploram os artistas que têm alguma coisa para dar. Então tentam ir para uma editora, são rejeitados e no dia a seguir metem tudo no youtube e o produto deles deixa de ter valor naquele momento. Esta desfragmentação está, também, a estragar a música. Quando um artista novo não consegui ter a sua obra editada e acaba por a divulgar, acabou ali. Então vai haver um milagre mas estes milagres são 1 num milhão ou mais. Lembram-se da Ana Lee? Onde é que ela está agora? Esta fase é muito complicada, a minha geração quase que não tem descendência e o que acontece, voltamos à mesma vaca fria, são produtos que duram um tempo muito curto.
MDX – Lembras-te de isto já ter acontecido antes?
AR – Sim sim, já aconteceu. Nem todas as editoras aguentavam o artista mesmo sem sucesso como a Valentim de Carvalho. A Polygram não era bem assim, tinha de dar sucesso ao segundo, se não desse já não valia a pena. Eram coisas que derivavam de editora para editora, mas houve sempre produtos na indústria musical. A partir dos anos 60, com o aparecimento dos Beatles, em que de repente se descobre que os jovens podem vender muitos discos, aconteceu o mesmo connosco nos anos 80 com o Rui Veloso e connosco. Só acreditaram em nós porque nós começamos a vender muito. O que se passa é que ao longo das décadas (voltando 20 anos atrás) em 1995, por aí, apareceram as boys band. Os Excesso tiveram sucesso num disco e depois foi sempre a cair, mas à volta desse sucesso apareceram dezenas de boys e girls band, 90% deles com um total insucesso discográfico mas faziam muitos espectáculos, até em playback total e na altura pensou-se que os tempos tinham mudado mas passado uns anos morreu tudo. Portanto, a nossa indústria sendo frágil, dava-se a estes excessos como se fosse the new big thing e de repente não é nada. Enquanto lá fora isto acontece mas não afecta a grande produção da indústria, aqui em Portugal afecta bastante porque somos pequeninos. Eu estava na EMI há 15 anos e passado 2 anos comecei a ver a indústria a encolher e de repente foram mandados para a rua 30 ou 40% de funcionários e isso aconteceu em todas as editoras multinacionais e passados 2 anos mais 10 ou 15% e de repente passamos a ver uma multinacional que antes tinha 40 funcionários, a ter 10. Aconteceu o mesmo na imprensa, nós deixamos de ter imprensa musical, deixamos de ter inclusive nos jornais diários secção de música e, portanto, tudo isto foi encolhendo de tal forma que hoje não temos quase nada e as redes sociais não são suficientes como as pessoas pensam. A própria rádio tem o mesmo problema… discutem entre si os shares como as televisões, só que o bolo é cada vez mais pequeno, a rádio neste momento não divulga, tem formatos que já ninguém entende, excepto a Antena 1 e a 3, se bem que já disse várias vezes ao Nuno Calado que lá fora está sempre a aparecer música nova, mas ninguém mata os velhos e aqui parece que esquecemos tudo o que está para trás. A M80, por exemplo, está cada vez com mais audiência, porque as pessoas não ouvem as outras rádios, estão fartas! Em Espanha eles passam música espanhola e passam de vez em quando uns ingleses e americanos, em França a mesma história, estamos em Portugal e parece que descobrimos um mundo novo. Se isto tivesse alguma lógica nós não tínhamos os nossos concertos cheios de gente, já tínhamos acabado. Demos 42 ou 43 espectáculos no ano passado, se somássemos as pessoas todas, davam 120 mil pessoas mais ou menos e isto põe-se de lado? Isto acontece com todas as bandas antigas. Eu não gosto da lei em relação à rádio, eu acho estúpido que em Portugal tenha de haver uma lei para passar música e mesmo assim não é respeitada. Eu acho que é um acto inteligente passar música portuguesa, ainda no outro dia, num concerto, disse que ia tocar uma canção que se a rádio da altura fosse igual à de hoje, não tinha o sucesso que tem, chama-se “Cavalos de Corrida”. Hoje em dia para conhecer um disco tenho de ter spotify, ir para a amazon porque a rádio não passa nada! Acho que há um desfasamento muito grande, toda a gente está com medo de pôr o pé no travão, para fazer uma rádio amiga da música. Isto é muito difícil? A rádio aparece por causa da música e o .fm sobretudo.
MDX – Vão reeditar o EP “Jorge Morreu”?
AR – Sim, vinil de 45 rotações tal como foi feito antes. Está esgotado há muito tempo, há mais de 30 anos que o disco não está no mercado e o disco está no mercado negro por 30 ou 35€ e acho que está muito caro, não tem razão de ser. Para quem gosta de vinil, nós vamos fazer uma edição seguindo todas as regras, com mais qualidade. Regravámos tudo, mas respeitámos o formato antigo, até me imitei a cantar! fizemos um trabalho muito bonito, estou muito orgulhoso deste trabalho. 40 anos merece isto, tinha de ser feito!
MDX – Relativamente à exposição que está agora em Almada – Na Margem, queria saber se Almada já foi a capital do rock.
AR – Do rock e da música! Logo no princípio, no final dos anos 70. Claro que havia e houve muitos projectos antes de nós mas gravaram discos sem nenhum reflexo. Também é preciso perceber o contexto sociológico da época, até 74, por exemplo, um rapaz chegava à adolescência e dava o nome para a tropa e o relógio começava a contar, portanto os grupos aos 22, 23 tinham de ir para a guerra, se viessem da guerra, queriam era casar e ter filhos e arranjar um emprego para esquecer aquilo. No final dos anos 70, início dos 80, a música em Portugal é desenvolvida em Almada e Porto, Lisboa não contava e quando digo Almada digo esta baía toda até ao Barreiro, havia grupos de Alcochete, Seixal, Setúbal, Barreiro, talvez fosse a resposta dos filhos da zona industrial. É a resposta dos adolescentes que deixam de ter de ir estudar para Lisboa e ficam concentrados nas suas cidades e as pessoas podiam estar aqui, começam a viver nos seus bairros e a ter o hábito da garagem, garagem é factor música nos anos 80. Não consigo explicar sociologicamente a questão de Almada, enquanto Lisboa tem muitos bairros à volta, dispersos, Almada é só um e se calhar isso tem alguma importância.
MDX – O lançamento das ‘Gravações Perdidas’, os 3 discos que saíram, é um triunfo para vocês?
AR – É um triunfo para mim sem dúvida. Se amanhã houver um litígio eu assumo a responsabilidade e os UHF não têm nada a ver com isto. Durante mais de 30 anos, no caso do Persona Non Grata, 36 anos, houve discos editados que nunca viram o mundo digital, estavam mortos. Eu tentei tudo, enquanto houve ainda um responsável em Portugal, eu tentei comprar, licenciar, fazer uma parceria e tudo me foi negado. Houve uma altura em que o senhor me disse que não podia vender aquele repertório se não iria empobrecer o seu catálogo, mas como ele não andava a editar nada, eu só lhe disse que um dia destes não havia discos à venda, como acontece hoje que praticamente só compra discos o coleccionador que gosta de ter o produto. Entretanto a pessoa desapareceu e há uma altura em que eu faço uma deriva da análise jurídica. Deixei de estar interessado enquanto artista com essa editora que também desapareceu, passei a avaliar aquele catálogo enquanto autor e não posso ser proibido de trabalhar! Aquela editora estava-me a impedir a mim e à SPA de estarmos a explorar um catálogo e termos o devido fruto financeiro do meu trabalho. Ninguém pode proibir ninguém de trabalhar, é um direito inalienável de cada um de nós e é aí que faço a análise jurídica diferente. Por outro lado, consegui encontrar o fotógrafo das capas, não sabia se havia uma exclusividade, claro que podia lançar os discos sem as capas originais mas não era a mesma coisa, e quando descobri o fotógrafo e ele me disse que se mantinha o autor com direitos reservados, acabou. Em todo o caso eu não assaltei o meu repertório, eu editei esses discos e mantenho nas capas a expressão “direitos reservados”, isso significa que amanhã se aparecer alguém a dizer que é detentor dos masters originais, legalmente instituídos, eu estou disponível para fazermos contas porque aquela editora inicial também me deve dinheiro. O que acontece entretanto é que a editora não só desapareceu como ninguém sabe o que é feito do espólio e deles. A posição que eu tomei não é muito bem vista porque é a forma do artista/autor dizer basta. O terceiro disco, o Ao Vivo em Almada (no Jogo da Noite) que é o último, era um disco em vinil que chegava a atingir mais de 300€ no mercado de usados. Acabei com estes excessos e exageros que não têm significado. Depois estamos a falar de discos que nunca estiveram num CD e agora estão em todo o lado, até no spotify.
MDX – Agora um tema um pouco diferente. Nestes 40 anos de estrada, como é o sentimento e a sensação que tens ao olhar para o lado e ver o teu filho a tocar na tua banda que apareceu quando ele ainda era uma criança?
AR – Eu não penso muito nisso porque ele é um profissional muito competente, muito obcecado com o seu trabalho e como tal já está assimilado. O Tó entrou para os UHF em 96 por acaso e contra a minha vontade. Tínhamos feito um disco um bocado complicado a nível de guitarras e os meus colegas acharam que ele podia dar um jeito como segundo guitarrista e é assim que ele aparece. Ninguém me disse nada e há um dia num espectáculo em Lisboa em que há uma altura em que olham uns para os outros, no encore, e dizem “e se o António tocar guitarra? “já estava tudo preparado para ele e ele aparece e toca uma ou duas canções connosco que já sabia, estava dentro de tudo. Tinha 20 anos. Depois foi ficando como segundo guitarrista e depois passado ano e meio ficou mesmo nos UHF.
MDX – Como fundador dos UHF qual é o maior orgulho que tens?
AR – O maior orgulho é ter construído uma carreira musical ininterrupta num país muito difícil para a arte, para a cultura e para a música. É pequeno e poucas pessoas consomem o produto cultural. Há muita gente que pensa que o livro tem de ser oferecido, que o disco tem de ser oferecido, a ideia é que a música tem de ser de graça. Mas porque? Nos anos 90 fui tocar a Paris pela primeira vez e já sabia da cadeia Fnac então pedi aos meus amigos para me levarem a uma Fnac e uma das coisas que mais me espantou foi ver pessoas com um cesto com discos e livros e pensei que era um mundo maravilhoso! Aqui tem sido um bocado doloroso e isto não muda. Portanto, ter conseguido uma carreira com independência como a nossa, é um orgulho muito grande. Sempre com convicção, a canção “Bora lá” é um resumo daqueles primeiros tempos em que era tudo tão difícil, não tínhamos dinheiro para as cordas, nem para as baquetas, nem sala de ensaio… ninguém tinha carro, íamos sempre de barco, comboio, metro, autocarro e quando começámos a ganhar dinheiro, à noite marcávamos um taxi e era uma felicidade enorme, era preciso ter vontade! Muita vontade para se fazer isto! Ao fim do dia por exemplo, eu trabalhava, estudava, era jornalista no Record e ainda tinha 2 filhos e isto só se faz com muita convicção e vontade e daí aquela frase: “então como é que é? bora lá!”
MDX – Agora uma pergunta meio pessoal minha por ser fã dos The Doors: Há anos que dizem que os Xutos são os Rolling Stones e os UHF os The Doors e, efectivamente, eu consigo perceber o porquê, e vocês sentem-se um bocadinho os The Doors?
AR – Durante muitos anos respondi a uma pergunta sacrossanta, que era esta: Como é que te sentes na pele do Jim Morrison português? Eu vivi uma vida muito agitada nos anos 80 e 90 com casamentos, divórcios, acidentes de carro, mudanças de editora, turbulências e de certa forma estive sempre um bocado à frente para o meu tempo e isso era muito escandaloso. À volta disto foi-se construindo essa ideia. Há uma frase importante do início dos anos 80 em que o Rock Week faz uma capa connosco e o Luís Vita tinha-nos feito uma entrevista e cria a frase “canal maldito” e isso cola-se, acho que é sobretudo isso. Agora, sonoridade? há! poesia? ha? declamo? sim! Mas isto não foi pensado, acho que os UHF muitas vezes são criticados por não terem marketing mas não nos importamos com o marketing, houve um certo isolamento, mas nem é um isolamento muito pensado, só não estamos a comunicar como a moda do tempo exige. Tudo isto ligado à questão do som, é verdade! Os The Doors se hoje fossem vivos, ao lado dos The Rolling Stones seriam sempre um grupo meio secreto, é a minha ideia! Lembro-me de uma frase de um artigo duma revista que tinha em casa que era assim: “Até os fabricantes de sabonete detestam os Doors”. Eu quando comecei a ouvi-los nem percebia o suficiente de Inglês para perceber o que ele estava a cantar, não havia vídeos nem programas de televisão, o primeiro vídeo que eu vi foi depois da morte dele, muito depois, por isso nem sequer tive essa noção… não andava a imitar ninguém. Em 81 quando estava a gravar a “Ébrios Pela Vida” (foi a primeira canção que gravei declamada), há uma altura em que eu vou à casa de banho do estúdio e aquilo era feito em mármore velho e tinha uma ressonância fantástica e diz-me o meu técnico: “O menino quer gravar na casa de banho?” e assim foi. Digo isto porque todo o álbum L.A. Woman é gravado na casa de banho do estúdio. Mas mais do que isso não… Quando me perguntam pelo Morrison costumo dizer que sou mais esperto que ele, porque ele já morreu e eu não!
Que venham mais 40 anos e que este rock que nos fez e faz crescer nunca desapareça!