Trixie Whitley é uma cantora, toca vários instrumentos (multi-instrumentista) e é dona de uma equilibrada e versatilidade vocal. Conterrânea dos dEUS (belga e americana), Trixie é filha do músico norte-americano Chris Whitley, que ficou conhecido pelo ecletismo musical mas onde o blues se destacou, tendo deixado o legado do soul na voz da filha. Acompanhada apenas com um músico na bateria, Trixie tocou um par de temas compostos deixando a assistência agradavelmente surpreendida (pelo menos a mim deixou). Guitarra, teclas e bateria foram os instrumentos que pelos seus dedos passaram e, ao que parece Trixie nasceu com o dom de compor, tocar e cantar. Acompanhou o seu pai ainda muito pequena (1987) em “Terra Incógnita” e depois da sua morte (2005) já editou 3 EP´s e 3 álbuns originais a título individual, o último “Lacuna” já este ano. Canta com o corpo todo, enche tudo à sua volta com um swing de alma e tem a capacidade de virar o timbre quando lhe apetece. Os dEUS não fariam a coisa por menos, Trixie Whitley foi uma boa escolha.
A relação dos portugueses com dEUS é duradoura, intensa e inabalável. Duradoura porque praticamente desde a sua existência (1991) que os belgas vêm a Portugal frequentemente tendo mesmo Tom Barman (vocalista e guitarrista) escolhido a zona de Sesimbra como zona de férias e descanso. Intensa na qualidade, dado que todos os músicos têm sempre um cuidado acrescido no trato com o público. E inabalável, porque mesmo que editem um álbum que não receba a concordância em uníssono, mesmo que uma vez por outra o alinhamento não seja o esperado, mesmo que haja uma falha ou outra no som, os dEUS são e serão sempre uma banda de culto, ponto final. Serão sempre perdoados por qualquer deslize ou ousadia, mesmo que seja colocarem um grupo de bailarinos em cima do palco do Coliseu dos Recreios, com pouco espaço e onde deu aquela sensação de “tudo ao molho e fé em Deus” (lá está).
Os dEUS não são propriamente aquela banda que está sempre a compor e passa o tempo em estúdio a gravar álbuns. Desde a sua criação (1991) que editaram sete álbuns, com pouca preocupação de terem alguma coerência nos intervalos de tempo entre eles. Desde 2012 que não lançam nenhum álbum (“Following Sea”) mas isso não é motivo para não continuarem na estrada e nos surpreenderem em palco uma e outra vez. Confesso que tentei fazer as contas às vezes que actuaram em Portugal e perdi-me, fiquei pela 20ª Edição do Festival SBSR (perdoem-me os fãs mais acérrimos). E o mais recente regresso teve como mote o de uma comemoração, “The Ideal Crash 20th Anniversary Tour”, o aniversário do terceiro álbum da sua discografia editado em Março de 1999. Por isso a expectativa do alinhamento que nos causa um nervoso miudinho, não existiu. Dois concertos de casa cheia (uma composta e outra esgotada), na véspera do Dia da Liberdade no Coliseu dos Recreios e no Dia da Liberdade no Hard Club no Porto.
Quando as bandas são francamente boas, é sempre difícil identificar de uma forma isolada “melhor” álbum. Os dEUS têm feito músicas muito boas em todos os álbuns e por isso destacar um em desfavor dos demais não me parece justo. De qualquer modo, “The Ideal Crash” marcou pela aspereza das cordas (incluindo a do violino) e pela marcação melódica das teclas. Um arranque depois da hora (o quarto de hora académico) com “Put The Freaks Up Front”, primeira faixa do álbum onde a voz de Tom Barman esteve meio a fugir (um pouco rouca talvez) e um som meio distorcido. Todos os músicos elegantemente vestidos (preto como predominante), barbeados e quase que lhe sentíamos a água-de-colónia! A condizer com a fatiota e logo no segundo tema, um grupo de bailarinos entrou de rompante palco adentro e posicionou-se entre os músicos com movimentos braçais ritmados com as cordas das guitarras, baixo e violino. Seguiram-se os temas do álbum, com um apontamento ou outro ligeiramente diferente (distorção mais contida, talvez) e com Tom a mandar umas larachas num português bastante nítido (incluindo a “after party” no Incógnito, que não era suposto sabermos!). Tom Barman apresentou os seus músicos mais que uma vez, deixando um solo da guitarra de Bruno Degroote, enaltecendo todos com o mesmo entusiasmo, Stéphane Misseghers na bateria, Alan Gevaert no baixo e Klaas Janzooms no violino e teclas (este o único músico que está com ele desde a formação da banda).
Se há temas bonitos dos dEUS estão neste álbum, “Magic Hour” e “Instant Street”. Estes foram acompanhados pelo público na cumplicidade dos 20 anos de crescimento, deles e nossos. A subida do rugir das guitarras, tão característico no quinteto belga, que reverte a melodia tornando-a num crescente expurgar dos males. Ouvíamos no público alguém a pedir mais agitação, pois estava tudo demasiado tranquilo na sua opinião, e lá tocaram “Magdalena” para o fazer lembrar que este era um só álbum e não dava para dizer “toca aquela!”.
Os temas de “The Ideal Crash” terminaram com “Dream Sequence” e com ele a retirada dos nossos deuses. O regresso foi em grande e para fazer o gosto aos fãs que, no fundo, estavam com vontade que fossem a outros anos mais recentes. “Quatre Mains” o único tema em francês que cantaram e que tem um ritmo alucinante, num correr de estrofes quase sem pausas como quem declama uma prosa sem rima (“Following Sea” 2012). Voltaram a 2011 com “Constant Now”, do álbum “Keep you close” que teve honras de tour em 2012 em Lisboa. “The Arquitect”, outro hitt dos flamengos (Antuérpia) onde todas as vozes se conjugaram na perfeição e que fizeram desertar os bares do Coliseu.
Um agradecimento sentido por todos estes anos (“it´s so simple as that”) e a magnífica “Nothing Really Ends” numa homenagem a Portugal. Uma despedida triunfal em que ficámos a cantar baixinho “I take it all from you” e embalados pelo violino de Klaas Janzoons. “Lisboa, coração, obrigada! Tchau, até já!” E será certamente um “até já” não fossem os dEUS a nossa banda há mais de 20 anos! Obrigada dEUS por estas (quase) três décadas de amor.