O que deveria fazer parte de duas noites quentes de viagens por asfaltos desconhecidos e translúcidos, por infortúnios adversos, reduziu-se a uma noite longa e intensa. Era sábado e a expectativa pelo primeiro laço entre a Fuzz Club e uma sala de Lisboa era alta. Apesar do atraso no início dos concertos ser desnecessário devido à quantidade de bandas existentes, o cansaço não superou o prazer e o Feedback Fever foi recebido de corpo e alma no Sabotage Rock’n’Roll Club no passado dia 29 de Junho.
O trio francês SeRvo abria as hostes e surpreendeu segundos depois de começar a tocar. Após uma intro suave e tranquila, rasgaram a atmosfera com um turbilhão de explosões e distorções incrivelmente atordoantes. A voz de Arthur, meio Ian Curtis, meio Peter Murphy com alguma distorção, saía dele como que vinda das profundezas de algo obscuro e, em comunhão com os instrumentos, remetia a uma mistura entre pós-punk, dark wave, shoegaze e psicadélico. Durante o concerto, passagens exploratórias de picos inesperados que tanto nos faziam sorrir de surpresa e de prazer como de desconforto. Uma certa aura hipnótica e inquietante saía pelas colunas iluminadas a média luz com umas luzes quase celestiais a contrapor a densidade que se vivenciava e os strobes que iam aparecendo de rajada. Foram 50 minutos de uma viagem atribulada, pesada e extremamente complexa.
De seguida, ainda com o coração meio descoordenado, uma viagem mais quente, menos atribulada mas não menos intensa. Os Pretty Lightning são dois alemães que gostam de paisagens e viagens pelo deserto. Com bateria, guitarra e uma voz alucinada fizeram-nos subir a uma mota e percorrer alcatrão que rasga desertos em direcção ao sol alaranjado. A saturação de um fuzz coberto de psicadelismo que desliza para um delta blues envolveu-nos numa manta que, para além de nos confortar, nos apaziguou a mente. Ao fecharmos os olhos, sentíamos a brisa e os raios de sol a tocar-nos levemente a pele. A alma, por sua vez, em repleto deleite, deixava-se ir pelo caminho fora, ao mesmo tempo que saltava, ritmada e alegre. Esta fora a viagem mais solta e descomprometida com travo a liberdade que iríamos fazer durante a noite.
Para finalizar, já a horas tardias, os grandes 10 000 Russos. Prontos a guiar-nos pela viagem do caos mental e loop emotivo. De imediato os olhos se fecharam e o corpo se preparou para desaparecer no espaço e no tempo. A composição de mestre com pedais carregados de fuzz intenso da guitarra e riffs agudos a contrabalançar com o baixo poderoso faz com que nos percamos numa imagética adulterada, ao mesmo tempo que mantemos um compasso firme ao ritmo da bateria que tanto tem de ligação à terra como de reflexo de uma dormência dos sentidos. Há uma série de choques impulsivos e magnéticos que aparecem em loop e nos afrontam guiando-nos a um transe quase profundo e visceral onde o transcendente se aproxima de nós mantendo-nos no desconhecimento das origens demoníacas ou celestiais. A paisagem sónica que olhamos de frente, em alguns momentos, mistura-se com frames de indígenas a circundar fogueiras connosco ao seu lado. O bolo kraut, psych, experimental é ornamentado de reverb, loops, fuzz e muita vontade de nos arrancar o coração do peito. A terceira viagem termina com os olhos meio colados da intensidade e profundidade do caminho, relembrando-nos que o mundo existe e que, afinal, já são quase 3 da manhã!
Ainda que alta, a expectativa fora superada e a esperança de que uma nova edição e um novo alinhar de almas fica no ar.