Não seguir a multidão tem sempre um sabor satisfatório, por vezes ingrato, mas sempre satisfatório. A noite de sábado passado, dia 13 de Julho, estava calma e sem grande movimento e foi no meio de um cemitério, numa igreja voluptuosa, a de St. George, que assistimos a um momento quase celestial, de um mestre da guitarra, o Sr. Thurston Moore.
Os dotes manuais com a sua melhor amiga já lhe são conhecidos dos Sonic Youth. É impossível esquecer aqueles riffs de sonoridade tão própria que tanto nos acompanharam em fase de crescimento. O que não conhecia eu era a sua capacidade de estar uma hora em modo incansável e imparável a fazer todo o tipo de trabalho e rendilhado na sua guitarra de 12 cordas, sem um segundo de descanso. Assim foi o serão de sábado à meia luz, de olhos fechados e uma completa esquizofrenia sonora construída a uma guitarra, pedais e dois amplificadores.
Uma introdução com efeitos simples e toques suaves e lentos nas cordas abria caminho para uma combustão de sentidos e sabores. No fundo, seriam os cintos a ser encaixados e a primeira mudança a ser colocada para dar início à viagem. Uma viagem que posso descrever como uma subida a uma montanha por estradas de um sentido, apertadas e sem protecção. Curvas, contracurvas e precipícios. Precipícios pelos quais caímos sem cair, onde sentimos a velocidade a aumentar, o ar a faltar e o chão quase a esmagar-nos a testa, mas antes de esmagar, uma mão pega no carro e devolve-nos à estrada para continuar o caminho. Como que um garoto com um brinquedo novo na genuinidade da descoberta, Thurston não tem mãos nem dedos a medir e o que faz com a guitarra, faz também connosco, neste caminho até ao cimo da montanha. Entre cordas e devaneios, luzes e contra luzes, apegos e desapegos. Vagas de intensidade bruta que se desfazem sabiamente em calmaria profunda. Este mestre tinha o poder de tornar o seu riff mais sujo, distorcido, inquietante e arrojado no riff mais limpo do mundo como se nada se passasse segundos atrás como que em passos de magia, como o carro quase a bater no chão que de repente se via na estrada outra vez. Uma viagem ao cume da montanha que nos guiou pelos diversos estados da alma nos seus opostos e em todas as fases e faces. Perto da recta final, sobe ao altar, onde tem os amplificadores e brinca com a distorção e o delay elevando a guitarra como se nos benzesse com raios de distorção aguda que tanto nos purificaram como nos desassossegaram. Termina dizendo que a peça sonora que tínhamos sentido e ouvido se chamava Alice Mooki Jayne, as três mulheres que mais o inspiram.
O encore fez-se timidamente com uma guitarra de 6 cordas, a qual não está acostumado a tocar, mas que o Sérgio da ZDB lhe trouxera, construindo um som límpido e bonito durante cerca de 7 minutos.
Uma igreja cheia de gente. Um homem de história, da história e de estórias, aquelas que muitos de nós também gostaríamos de ter vivido. Ali, diante de nós, sozinho, de mãos dadas com a sua alma, entregue à sua companheira de vida, a guitarra. Uma imagem algo imaculada naquele que foi mais um festejo do 25º aniversário da ZDB. Que venham mais 25, com muita audácia e bom palato musical!
Fotografias – Vera Marmelo